Kaos e criação literária
A magia de um Café muito além do Jardim
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Na primeira residência do Olimpo, Zeus e Hera aconchegaram-se no grande sofá da sala.
Após os eventos narrados na série “Kaos”, da Netflix, que arrancaram do casal – e dos outros deuses – o poder supremo de interferir na existência dos mortais, ambos tinham se resignado ao seu novo status de seres supremos meramente simbólicos e adotado, como convinha, uma vida contemplativa.
Nos tempos presentes, dedicavam-se a assistir filmes, seriados e documentários exibidos nas principais plataformas de streaming e a ler obras literárias variadas, arriscando-se, eventualmente, a escreverem crônicas sobre os perrengues e angústias vivenciados pelos humanos do século XXI.
Naquela noite, preparavam-se para assistir na Netflix a uma transmissão ao vivo da celebração do segundo aniversário do Café Literário do Notibras, um espaço brasileiro que recebe e publica obras de autores de variados estilos e matizes.
O site aceita e publica textos não muito longos – contos, crônicas, poesias e artigos – oriundos de diferentes regiões do planeta com a única exigência de serem escritos em português.
-Olha lá, Hera, já vai começar!
-Show! O Prometeu não tinha dito que vinha assistir com a gente?
-Está atrasado, mas logo deve chegar.
-Azar dele se perder coisas interessantes! Olha, os editores-anfitriões, Daniel Marchi, o escritor-cinematográfico, Eduardo Martínez, o primeiro-escritor, e Cecília Baumann, a poetisa-mensageira dos deuses, já estão a postos para receberem os outros autores.
-Sim… e que belos looks! Agora alguém se juntou a eles para ajudar na recepção, deve ser o mentor do projeto do espaço literário, José Seabra, o Chefe.
-Que momento, Zeus! Estou curiosíssima para conhecer os rostos de todos os autores e autoras.
-Ah, mulheres… he, he! Mas confesso que também estou ansioso para conhecê-los quase em carne e osso.
-Já lemos obras de todos eles… e eu ainda não consegui definir os meus favoritos e favoritas. Fico encantada com todos os contos, crônicas, poemas e cronicontos que devoro diariamente.
-Já são mais de cem autores, segundo o Martínez… e todas as semanas chegam mais talentos para o espaço. Eu também acho difícil dizer de quem e do que mais gosto por lá.
-Após cada leitura, sempre fica um gostinho de quero mais, né?
-Sim, acho que ficamos viciados…e que fabulosas ilustrações da Dona Irene, do Francisco Filipino e dos outros ilustradores.
-Magníficas! Sempre emulam com magia e maestria o conteúdo das obras!
-Falando na multitalentosa Dona Irene, a primeira-colunista, olha lá… ela também se juntou aos anfitriões agora!
-Natural, ela também faz parte da diretoria do espaço… e está elegantérrima!
Naquele momento, Prometeu, esbaforido, entrou na sala.
-Até que enfim, atrasadinho! Sente-se e aprecie o espetáculo, falou Zeus.
– Aceita uma taça de vinho? perguntou Hera.
-Aceito, sim, cara Hera! Perdi muita coisa?
-Até que não, o comitê de recepção já está a postos, e agora é que vão começar a mostrar os autores convidados.
-Ainda bem, quero conhecer todos eles!
-Por que se atrasou? Algum problema no percurso? questionou, Zeus.
-Não! É que, antes de sair de casa, recebi um telefonema que diz respeito a nós três, mas falo para vocês do que se trata depois do término da cerimônia.
-Ótimo, porque agora não quero perder nadica de nada desse evento, determinou Hera.
-Vejam, estão chegando os primeiros autores, comentou Zeus, animado.
-E estão exibindo legendas com o nome de todos eles… legal, aprovou Hera.
-Muito bom mesmo, muitos não expõem as suas fotos no Instagram. Assim poderemos saber quem é quem sem sombra de dúvida, acrescentou Prometeu.
-Chegaram Antonio Albuquerque, Álvaro Salgado, Antonio Gil Neto, Arthur Claro, Betine Daniel, Cadu Matos – o enigmático, Cláudio Carvalho, Castro Oliveira, Cassiano Silveira, Cícero Petracco, Cleber Pacheco, Cris Guedes, Cassiano Condé – o maestro de O Lado B da Literatura, Daniel D’Avila…
-Acho que organizaram a entrada deles em cena por ordem alfabética, observou Zeus.
-Conforme o Eduardo Martínez não cansa de ressaltar, não existe estrelismos no espaço, então, nada mais adequado do que a ordem de entrada ser estabelecida dessa forma, analisou Prometeu.
-Sim, apesar de todos serem muito talentosos, o pulo do gato do espaço é a exaltação e a valorização do coletivo formado por todos eles, concordou Hera.
-O brilho de um enaltece o brilho de todos…e vice-versa, lição que infelizmente só aprendi depois dos meus tempos de onipotência, reconheceu o ex-supremo-deus.
-Sabemos bem disso, caro criador da humanidade, mas antes tarde do que nunca reconhecer os próprios erros, comentou, ironicamente, Prometeu.
-Sim… mas você também não é nenhum santo, prezado pai dos mortais, replicou Zeus, meio irritado.
Com um sorriso de canto de boca, Hera admoestou os parceiros de sessão televisiva:
-Meninos, não é momento para deixar aflorar essas velhas mágoas… Concentrem-se nos autores!
-Tens razão, minha querida! Olhem, está chegando a segunda leva de autores!
-Estou vendo, Edna Domenica e suas parceiras de obras coletivas, a Tais Palhares e a Rosilene Souza, Emanuelle Nascimento, Fábio Biazetti, Francisco Filipino – o ilustrador, Gilberto Motta – o imprevisível, Glória Sophia Pedrosa Couto, Guilherme de Queiroz C. da Rocha, Hélio Cervelin, Ilma Pereira, Joseani Vieira, J. Emiliano Cruz – o escritor dos folhetins – e sua misteriosa parceira, a escritora B…
-Havia muitas dúvidas se a escritora B. realmente existia ou se era uma abstração da mente do J. Emiliano… Agora ela se revelou ao vivo e em cores, muito simpática e luminosa por sinal, extasiou-se Hera, servindo-se de mais vinho.
-Observem as expressões emocionadas de todos eles, acrescentou Hera.
-Sim, eles estão emocionados por conhecerem pessoalmente uns aos outros, supôs Zeus.
-Mais do que isso, a emoção também é por conta do generoso acolhimento – deles e das suas obras – por parte dos anfitriões… sei como é isso, acrescentou, Prometeu.
-Como já disseram com outras palavras Eduardo Martínez e Dona Irene, em regra, a mídia tradicional e os algoritmos das big techs são filtros tacanhos, desatentos e injustos para promover novos talentos literários, sentenciou, Hera.
-A nossa audiência para esse evento e o nosso prestígio cotidiano às obras deles é uma prova cabal disso, minha querida Hera, obtemperou Zeus.
– Concordo, amigos! E a Deusa Atena e as divinas nove musas das artes, Calíope, a poesia épica, Clio, a história, Érato, a poesia lírica e erótica, Euterpe, a música e a poesia lírica, Melpômene, a tragédia, Polímnia, a poesia sagrada e a retórica, Terpsícore, a dança, Tália, a comédia e Urânia: a astronomia, com certeza também concordam, acrescentou convicto, Prometeu.
-Além da concepção coletiva de mútuo apoio, o mais encantador no Café Literário é que os autores, em menor ou maior grau e em diferentes tonalidades, incorporam maravilhosamente esses quesitos sagrados em seus textos, elogiou Hera.
-Vejam, mais uma turma de autores está entrando!
– Estão aí Luciana Moraes, Luísa Nogueira, Luzia Couto – a primeira-poetisa, Maria Lúcia Flores do Espírito Santo Meireles, Marlene Xavier Nobre, Mathuzalém Jr. – o implacável, Mércia Souza, Milena Maria Testa, Natália Phavani, Paulus Bakokebas, Plínio Pavão – o cavalheiro romântico, Rafaela Fernanda Lopes, Renan Damazio – o Red Cap, Rodrigo Sorato, Sandra Villaverde, Saulo Braga, Sarah Munck, Simone Magalhães, Thalita Delgado, Tania Miranda – a imortal, Tony Casanova…
-Agora estão todos brindando e confraternizando juntos, espetacular… emocionou-se Prometeu.
-Adorei os looks das meninas, uma mais empoderada do que a outra! E noto que algumas até se inspiraram em mim…he, he!
-Sim, minha querida Hera, o seu figurino – principalmente o seu espetacular vestido vermelho – em “Kaos” não passou despercebido, concordou Zeus, sorrindo.
-Os meninos também não decepcionaram e capricharam na indumentária, elogiou Prometeu.
-Além dos abraços afetuosos e agradecidos nos mentores/editores, Seabra, Marchi e Martínez, observo um carinho muito especial de todos para com a poetisa-editora, Cecília Baumann, e para com a primeira-colunista, Dona Irene, registrou Hera.
-Sim, isso tem um sentido transcendental, cara Hera! Uma é a acolhedora, competentíssima e simpaticíssima editora que faz a primeira-conexão com o espaço coletivo-mágico que ilumina e inspira a todos. A outra é a cronista onipresente que disseca todas as questões com a sua poderosa visão de raio X sem perder a ternura, explicou Prometeu.
-Poderes divinos femininos personalíssimos, suspirou Zeus.
-Por supuesto que sim, concordou Hera, com um sorriso triunfante.
-Olhem, agora estão mostrando uma sinopse das obras de cada autor em um telão!
-Que dez, estão todos hipnotizados apreciando os trabalhos que já foram publicados no Notibras.
-Precisamos de mais vinho, Hera! Vou buscar!
-Verdade, Zeus, a noite vai ser longa!
-Preciso de mais água também, senão não vou aguentar o tranco, pediu Prometeu.
Após mais quatro horas de visualização das obras publicadas, cumprimentos, parabéns e conversações literárias, políticas e existenciais entre os presentes na confraternização, os editores-mentores e promotores do evento avisaram a todos que havia chegado o fim da festa, prometendo, entretanto, que o evento iria se repetir no ano seguinte.
-Vamos ter um seríssimo problema de espaço para a próxima edição do evento, comentou Eduardo Martínez com os seus pares.
-Por que o número de autores presentes vai aumentar? perguntou Daniel Marchi.
-Não apenas em função disso…Cecília, explique para ele.
-É que milhares de leitores estão no Instagram pedindo para receberem convites para a próxima edição do evento…inclusive, três deles denominam-se Zeus, Hera e Prometeu e deram como endereço, Olimpo, Antiga Grécia.
-Meus deuses, como escreve o J. Emiliano! E agora?
-Vamos dar um jeito, parceiros, acalmou-os, José Seabra.
-Se você diz, Chefe, suspirou preocupado o escritor-cinematográfico.
-Vamos pensar juntos, parceiros! O Chefe tem razão, não podemos decepcionar os nossos queridos leitores, reiterou Dona Irene.
No Olimpo, já “alegrinhos” e com as taças de vinho ainda irrigadas, os três inusitados fãs do Café Literário ainda encontravam forças para os últimos “considerandos” antes de chegarem aos “finalmentes”, deliciosas expressões consagradas pelo também imortal Dias Gomes no seu impagável “Bem-amado”.
-Bem, acabou-se o que era doce!
-Acho que por hoje deu, meninos!
-Esperem… Prometeu, você disse que tinha algo importante para nos dizer depois que o evento terminasse!
-Ah, é verdade, Zeus! Acontece que recebi um telefonema dos produtores de “Kaos”… eles querem fazer uma segunda temporada da série.
-Sériooo?, animou-se Hera!
-Magnífico! Exclamou Zeus.
-Mas eles estão com um problema…
-E qual seria?
-O roteirista não quer escrever uma continuação do seriado, disse que está sem inspiração para isso.
-Hum… nada que não se resolva, especialmente depois do que vimos ao vivo e em cores na noite de hoje, propôs Hera com o seu sorriso emblemático.
-Você está sugerindo que… Coçou a cabeça Prometeu.
-Sim, por que não? Acabamos de ver os melhores roteiristas do realismo-fantástico da atualidade na nossa tela, asseverou Zeus.
-Exatamente, concordou Hera.
-Vocês têm toda razão! Vou dizer aos produtores que temos a solução para o problema… depois vou contatar os editores do Café Literário para encomendar um roteiro coletivo elaborado pelos autores do espaço, assentiu Prometeu.
Em outras telas de múltiplas e cósmicas dimensões, outros leitores-autores imortais comentavam o evento que acabara de terminar:
-Até que gostei… mas meio humano, demasiado humano!
-Autores de todo o mundo, uni-vos!
-Isso é melhor do que a minha Comédia Humana!
-Eu leria tudo isso por mais cem anos… e sem sentir solidão!
-Tudo vale à pena…depois disso, preciso criar mais heterônimos!
-Com guerra ou com paz, quero ler mais disso!
-Nem crime e nem castigo para eles… não tem nenhum idiota nesse espaço!
-Agora quero continuar minha metamorfose, com ou sem processo!
-Ser ou não ser? Preciso tomar mais desse café!
-Corvo, Gato preto…que nada! Esse espaço é mais porreta que a casa de Usher!
-Mas, bah, caíram todos os butiás do meu bolso… será que eles publicam mais uma história do Analista de Bagé ou do Ed Mort?
Enquanto isso, após se despedirem de Prometeu, o casal Zeus e Hera se dirigia para a alcova e uma coisa não saía da cabeça deles: “será que a nova temporada vai nos devolver o poder divino?” Olharam-se e nem precisaram falar nada.
