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Odisseia

A viagem

Publicado

Autor/Imagem:
Mércia Souza - Foto Francisco Filipino

Acordo cedo para meu retorno a Cachoeiro, depois de vinte dias em Pernambuco, chegou o momento de voltar para casa. Me despeço da minha tia, sigo com meu tio até parte do caminho, paramos e chamo um carro de aplicativo para concluir o trajeto até a rodoviária de Vitória.

O motorista tinha cara de poucos amigos e me cumprimentou seco. Alguns instantes em silêncio, confiro o tempo de percurso, pergunto sobre o trânsito e não sei como a conversa toma um rumo inesperado, digo que estou voltando de Pernambuco e o motorista é natural de lá.

A cara amarrada muda, a conversa se torna agradável e eu nem vejo o tempo passar.

Desço na rodoviária, vou direto ao guichê, peço a próxima passagem para Cachoeiro. O atendente me olha e diz:

— O próximo Ônibus são às 10h30min, mas o ônibus de 9h é esse que está chegando agora, acidente no caminho, muito trânsito, vai querer a passagem assim mesmo?

Olho o relógio e só então me dou conta da distância entre o aeroporto de Vitória, a casa do meu tio e a rodoviária, foram quarenta minutos de carro e nem prestei atenção.

Não tenho escolha mesmo, compro a passagem, decido ir ao banheiro e depois procurar um bebedouro, provavelmente ficarei por ali uns cinquenta minutos.

Mal saio do guichê, vejo os banheiros e sigo.

Vejo um ônibus a toda velocidade passar por detrás do ônibus atrasado, parar na plataforma e, mesmo sem ver o motorista, sinto a agitação dele.

Volto.

— Esse Ônibus vai para Cachoeiro? Pergunto.

— Sim. Ele responde como uma criança agitada.

— Cortei caminho, caso contrário eu não teria chegado agora. Ele fala com outra passageira como se a conhecesse.

— Corta novamente, não consegui pegar o outro ônibus. Fala uma passageira atrás de mim me fazendo entender que conhecia o motorista.

Peço ao motorista para colocar minha mala no bagageiro, ele pega, coloca ao lado dele no chão e diz:

— Pode entrar.

Olho da janela e vejo minha mala sozinha, fico alerta vigiando e tentando encontrar com os olhos o motorista.

Ele está no guichê, retorna, pega a mala, leva para o bagageiro.

Decido ir ao banheiro do ônibus.

Volto, o ônibus já está em movimento.

— Aqui seu papel. Diz o rapaz de pé no corredor.

Olho para ele sem entender e ele explica.

— O papel da mala, você estava no banheiro, o motorista deixou comigo.

Pego, agradeço e sigo até minha poltrona.

O ônibus para, o motorista se levanta, abre a portinha atrás dele, atravessa e pergunta:

— Eu saí às dez e trinta? Esqueci de conferir.

— Saiu, sim, todos respondem.

Eu olho o relógio, exatamente dez e trinta, ele não saiu, mas sorrio e continuo quieta.

__ Se meu gerente ligar e perguntar, confirmem que saí às dez e trinta.

Ele se senta, liga o ônibus e eu me pergunto.

— Como o gerente ligaria? Olho para as duas mulheres que conversava com ele na entrada e reforço a ideia de que eles se conhecem.

Algum tempo depois, as duas mulheres seguem para o fundo do ônibus e, juntamente com o homem que me entregou o papel, iniciam uma conversa dando a entender que os três se conhecem.

Algum tempo depois, outro acidente, percebo uma mudança na rota.

Cochilo.

Abro os olhos e estou em um lugar completamente desconhecido, ônibus parado no acostamento, tomo um susto.

O motorista percorre o corredor do ônibus, para ao meu lado e diz:

— Outro acidente, cortei caminho, tudo parado lá, vou aguardar só um pouquinho o ônibus que vem atrás, o motorista não sabe o caminho.

O jeito que ele fala parece que nos conhecemos, tento recordar e nada.

Uma mulher se levanta atrás dele.

— Foi aqui que minha irmã morreu?

A forma como ela pergunta e se refere a irmã me faz entender que ela e o motorista se conhecem.

— A moça que morreu sexta?

— Sim.

— Foi aqui mesmo.

Percebo que ninguém se conhece, os três atrás perguntam um ao outro de que cidade são.

Rio.

Durante toda a viagem, todos se comunicavam como velhos conhecidos, pensei que eu fosse a única estranha do ônibus, mas até o motorista me deixou confusa, achei que me conhecesse.

Por fim, o motorista detrás liga, acertam o caminho e seguimos sem parada até Cachoeiro.

Desço.

— Aí, esse é o ônibus que eu estava esperando, ele não sabia o caminho, ah, sua mala né.

Segue o tom de intimidade.

Pego a mala e cada passageiro segue uma direção diferente. Me despeço do motorista e penso.

Que viagem, em todos os sentidos, uma viagem entre cidades e uma viagem de loucura, ninguém se conhecia, e todos deram a entender que se conheciam.

Sigo arrastando minha mala e a loucura do dia em minha memória.

………………………………………

Mércia Souza, mãe, avó, artesã crocheteira e escritora, descobriu sua paixão pela arte ainda na infância, possui três livros publicados, dois romances e um de crônicas e participação em várias antologias. Fundadora do projeto “Mulheres com voz” sonha com um mundo de igualdade.
Atualmente reside em Cachoeiro de Itapemirim-ES.

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