Reluzente Ouro Preto
A vida é cheia de letras em forma de livro mutante
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Ouvi, de uma pessoa, a frase: “sua vida é tão poética, cheia de boa literatura.”
Em parte, é verdade. Porque eu procuro que assim seja. Triste ou feliz, tranquilo ou preocupado, gosto de estar sempre com um livro à mão. Escolho, quando saio de férias ou em viagens curtas de feriado prolongado, o meu “livro de viagem”. Há muitos anos não viajo sem levar um. E, se por acaso esqueço, logo providencio a compra de uma edição qualquer, de boa qualidade, no lugar em que chego.
Não que, durante o cotidiano, eu não tenha meus momentos de afastamento severo de qualquer bela página. Quem conseguirá se conservar poeta quando o carro apresenta problemas, quando descobre que esqueceu de pagar a conta de luz ou quando sai para comprar um telefone sem fio? Ainda assim, dependendo do dia, consigo ver — como hoje vi — poesia nas coisas mais simples: numa fila de mercado ou numa casa antiga e deteriorada que observei andando pela rua.
Lembro da primeira vez em que, nas ladeiras íngremes e vielas tortas de Ouro Preto, eu caminhava com o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles; ou de quando, sob o sol escaldante da Sicília, lia para mim mesmo o Sicilianas, de Murilo Mendes, acompanhado de Tempo Espanhol. Certa feita, retirei-me com meu filho para um remoto hotel-fazenda no interior do Rio de Janeiro, apenas para terminar de ler, num clima adequado, A Menina Morta, de Cornélio Pena.
Quando muito jovem, com tendências à filosofia mística que mais tarde abandonei, encontrei, maravilhado, na prateleira de uma livraria no Parque das Águas de São Lourenço, no sul de Minas, o exemplar de uma complicadíssima obra de um autor suíço. Ele pregava a existência de uma energia que envolve todas as coisas e permite ao homem conhecer o passado remoto do planeta e do universo. Eu tinha, então, menos de vinte anos — e talvez tenha sido aquele o meu primeiro livro viajante.
Agora, pensando bem, percebo que pouco viajei na companhia de meu poeta preferido de todos os tempos, Augusto Frederico Schmidt. Talvez porque Augusto já me acompanhe quase todos os dias, seja em poemas, seja em prosa — como em As Florestas —, seja no seu Canto da Noite, um dos meus prediletos.
Um dia, no entanto, ainda quero experimentar a sensação de viajar comigo mesmo — digo, comigo em forma de literatura. Almejo levar A Verdade nos Seres, meu primeiro (e único) livro de poemas, para algum lugar especial.
Talvez o livro, nesse caso, me acompanhe como metáfora: uma viagem comigo e em direção a mim mesmo. Um tempo de observação, de escuta da voz interna que todos temos. Sem absolutamente nada com que me preocupar, exceto meus próprios pensamentos e vontades. E, ainda, para buscar alguns momentos de solidão criativa — aquele tipo de isolamento de onde brotam versos que, em meio a outras tarefas e compromissos, acabariam esquecidos.
Ali, no meio das páginas, percorrendo versos tão bem conhecidos, mas lidos por olhos renovados, talvez até pensasse que tivessem sido escritos por outro. Alguém com história, gostos ou crenças semelhantes aos meus, mas que, ainda assim, fosse outro. Alguém que lesse, pela primeira vez e sem reservas — afinal, nunca somos inéditos para nós mesmos — as estrofes que falam de um jardineiro capaz de parar um trem com sua caneta e de construir monumentos às pessoas que o esqueceram; de alguém que caminha, reflexivo, por antigas tumbas num velho cemitério; que recebe clientes atônitos com sua versão de poeta; que descreve uma viagem de tropeiros; que morre em casa, após revisitar memórias incômodas à beira de uma praia; ou que conversa longamente com seus filhos enquanto pensa em construir um painel eletrônico que o coloque em contato com seus ancestrais.
Às vezes, penso que preciso tentar. Ou, então, reaprender a me ver com o olhar da primeira vez. E não com o olhar desgastado e exausto de quem, inevitavelmente, é sua própria companhia aonde quer que vá. Assim, talvez fosse possível descobrir algo que ainda valha a pena pôr, sob a forma de verso, dentro de um novo livro.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com