Curta nossa página


Mobiliário

Abrindo espaço para nós

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

“É a nossa atenção que coloca os objetos num quarto, e o hábito quem os retira, abrindo espaço para nós”.

Marcel Proust escreveu essas palavras em À sombra das raparigas em flor, segundo volume do monumental romance Em busca do tempo perdido. Ao lê-las, Juarez sorriu, diante de mais uma imagem audaciosa e provocadora do autor. Em seguida, pôs um marcador na página, fechou o livro, entrou no quarto do hotel – e descobriu, mortificado, que algumas boutades, certos ditos espirituosos, podem ser literais.

O quarto estava apinhado de objetos. Cortinas pesadas ocultando a janela, cama com lençóis e fronha cuidadosamente dobrados, mesinha de cabeceira, escrivaninha, cadeira, poltrona, televisão presa à parede, no alto, tapete macio, telefone, luz sobre a mesinha de cabeceira, um lustre no teto. Foi ao banheiro e viu o vaso brilhando de limpeza, papel higiênico intocado, sabonete, xampu e toalhas felpudas numa mesinha, junto à banheira. E todas essas coisas olhavam-no com indisfarçada hostilidade, transmitindo a mensagem: “Quem é esse intruso? Por que está aqui, por que veio perturbar nossa ordem, nossa paz”?

Juarez recebeu essas palavras como um golpe no peito. Pensou em desculpar-se pela invasão, mas descartou logo em seguida a ideia, seria loucura oferecer escusas a um mobiliário incomodado por sua presença.

Não ousou colocar sua bagagem sobre algum móvel e muito menos deitar-se, seria quase um ultraje perturbar a perfeita arrumação do leito. Foi sentar-se na poltrona, mas esta afastou-se com um rosnado:

– Tira essa bunda de cima de mim!

Por pouco, não se estatelou no chão. Enquanto todos os móveis riam, decidiu falar – não com eles, mas consigo próprio, embora suas palavras lhes fossem destinadas:

– Que quarto bonito! Que mobiliário elegante! Infelizmente, ficarei aqui apenas três dias. Dá até pena desarrumar a cama, porém preciso repousar. Mas antes, um bom banho, naquela linda banheira…

As palavras de elogio pareceram acalmar os móveis. Pelo menos, pararam de zombar dele.

Entrou no banheiro morrendo de medo. E se o vaso reagisse à altura, pagasse na mesma moeda, jogando-lhe de volta o que nele era depositado?

Para se precaver, elogiou o tempo todo as instalações. Felizmente, nada aconteceu de inusitado, fez o que tinha de fazer sem percalços. Depois, tomou um banho demorado, sempre louvando as linhas harmoniosas da banheira. Em seguida, secou-se com cuidado – vai que machucava a toalha e ela, zangada, o molhava de volta –, vestiu-se e retornou ao quarto.

Os móveis o aguardavam, em silenciosa expectativa.

Improvisou um bocejo, apagou quase todas as luzes, deixando acesa apenas a do corredor que levava ao banheiro, deitou-se e cobriu-se com um dos lençóis. Fingindo dormir, captou algumas das mensagens que os móveis trocavam entre si:

– Vamos acabar com ele quando estiver dormindo profundamente?

– Não, deixa estar, ele até que foi gentil.

Tranquilizado por essa observação, Juarez conseguiu adormecer.

Na manhã seguinte, decidiu cumprimentá-los, mas os enquadrou num salve geral:

– Bom dia, manhã bonita. Bom dia, sol. Bom dia, ar puro. Bom dia, móveis elegantes do meu quarto, que me acolheram.

E saiu.

À noite, não teve problemas, percebeu que o mobiliário o olhava com menos desconfiança, se não com uma pitada de aceitação. De manhã, repetiu o ritual do cumprimento generalizado e foi cuidar de seus negócios.

Na noite do terceiro dia, deparou-se com móveis inertes, sem vida. Mesmo assim, não ousou utilizá-los de maneira brusca. De qualquer modo, conseguiu dormir confortavelmente, pela primeira vez sob os lençóis e a fronha. A cama parecia mais espaçosa, mais confortável. Proust estava com a razão, o hábito – três noites de polida convivência – definitivamente abrira espaço para ele.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.