Devorar e matar
Acordou assustado e se perguntou quem o estaria arranhando e falando aquilo
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O suave arranhar da garrinha acordou Luciano, bem a tempo de escutar um murmúrio:
– Devorar… Matar…
Acordou assustado e se perguntou quem o estaria arranhando e falando aquilo. Acendeu a luz e viu um ser pequenino, de uns 10 centímetros de altura (incluídos os chifres), que rosnou baixinho para ele e depois sorriu, meio sem graça. Luciano sorriu de volta e falou a si mesmo:
– Igualzim aos belzebu que as pessoa guarda dentro da garrafa, pra ter sorte e enricar!
E Luciano bem que precisava de sorte e de dinheiro. Perdera o emprego em Belo Horizonte e voltara à casa que fora de seus pais e agora era sua, em Patos de Minas, onde vegetava, sem encontrar emprego mas gastando o mínimo. Uma vida solitária e pobre. Quem sabe o pequeno ser (ele relutou num primeiro momento em chamá-lo de demônio) faria chover na sua horta? Decidiu ficar com ele – claro, se o chifrudinho não se desmaterializasse em uma nuvem de enxofre. Mas não o encerraria em uma garrafa, seria antes um conselheiro de caminhos escusos para a riqueza, um grilinho falante da malandragem. Chamou-o de Lu, seu apelido e primeira sílaba de Lúcifer. A essa altura, já admitia sua natureza diabólica; era mesmo um demoninho, apenas seu.
Nos meses seguintes, se não choveu a cântaros na horta de Luciano, pelo menos chuviscou. Lu lhe indicava quais bilhetes comprar na loteria e ele ganhava com regularidade – nunca toda semana, para não levantar suspeitas, jamais uma fortuna, apenas o suficiente para sobreviver apertando um pouco menos o cinto. O diabinho também lhe apontava mulheres que estavam a fim dele, algumas casadas, à primeira vista irrepreensíveis. Era só chegar junto e…crau. O desempregado passou a viver em uma atmosfera de sexo abundante e finanças mais confortáveis que antes.
Mas um morador da casa não aceitava o diabinho de jeito nenhum: Tobias, o gato. O bichano conseguia vê-lo mesmo quando estava invisível para todos, pousado no ombro de Luciano, exercendo seu ofício de grilo falante malandro, indicando bilhetes premiados e mulheres dadivosas. Tobias passava o tempo rosnando fundo, o pelo eriçado, doido para avançar naquele rato de chifres. Só que já não seria tão fácil, o Lu das profundas do inferno estava crescendo, já era do tamanho de uma ratazana.
Certa noite de luar, Luciano estava na pequena varanda da casa, observando a mata próxima, quando ouviu um uivo de dor vindo da sala, seguido das palavras “Devorar… Matar”. Correu para dentro e viu que o demoninho arrancava com os dentes nacos do corpo de Tobias e os engolia. Deu um pontapé no agressor, jogando-o longe; ele bateu na parede, rosnou forte e contra-atacou o humano.
– Devorar…Matar… – repetiu, agora com voz verdadeiramente demoníaca. Também havia crescido e ficado muito mais forte.
Demasiado tarde, Luciano percebeu que não estava às voltas com um animal predador. Um bicho feroz mata e devora a presa; o Lu demônio havia enunciado claramente suas intenções: devorava a vítima viva, que morria em consequência dos músculos e nervos dilacerados e do sangue perdido.
Tobias conseguiu fugir, pulando por uma janela e correndo a toda velocidade para a mata próxima, para curar seus muitos ferimentos. Já Luciano – ou o que restou dele – ficou caído no chão. O filhote de belzebu, por sua vez, diminuiu de tamanho, até ficar outra vez com uns 10 centímetros de altura (incluídos os chifres), e voou pela janela, fofinho, em busca da próxima vítima.