Rebeldia
Adriana, a adolescente de 78 anos
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Adriana, 78 anos, a maior parte vivida sob as asas do pai, dos irmãos e do marido, andava com ânimos rebeldes, como se justamente agora, já velha, o espírito adolescente a tivesse alcançado. Quem não estava gostando muito dessa história era Marcos, o primogênito.
O rapaz… Bem, não se trata exatamente de um rapaz, já que o sujeito beirava os 50. Quanto aos mais novos, ou não estavam nem aí com as atitudes da mãe ou, pasmem, até pareciam gostar. Neste campo estavam Letícia, a rebelde por direito, pois ocupava a condição de filha do meio, bem como Lauro, o caçula.
Cinco ao todo e, para não deixar qualquer resquício de dúvida, eis a ordem de nascimento dos herdeiros, que em tempos idos, os patriarcas poderiam lhes conferir autoridades de acordo com a antiguidade: Marcos, Geraldo, Letícia, Fernanda e Lauro. Pura bobagem, mas que, aqui um pasmem de verdade, algum incauto poderia concordar que o simples fato de ter vindo a este mundo primeiro lhe daria certa primazia. Deixemos questões tolas de lado, pois o assunto não é a prole, mas a mãe.
— Mamãe, a senhora sabe que não pode sair desacompanhada?
— Como assim, Marcos?
— Não é seguro e não fica bem.
— Não é seguro? Não fica bem?
— É. A senhora pode ter enfarto fulminante na rua. Já imaginou?
— Enfarto fulminante, Marcos?
— Sim. Já imaginou?
— O problema é, então, o enfarto fulminante?
— Há também AVC, desmaios, um mal súbito qualquer.
— Hum!
— Quando papai era vivo, não me preocupava com a senhora, pois ele sempre estava por perto, mas agora…
— Agora o quê, Marcos?
— A senhora está sozinha.
— Sozinha?
— É.
— Ouviu isso, Cida? O meu filho aqui, pelo visto, não sabia nem a profissão do pai. Deve pensar que o pai era médico e não advogado.
A empregada voltou o olhar para a patroa e sorriu.
— Mamãe! Por que a senhora tá me tratando assim?
— Olha aqui, moleque, passei a vida inteira calada, fui adestrada… Veja bem o termo que usei. Adestrada! Sim, isso mesmo! Adestrada para ser uma criatura mansa, sem opiniões, sem desejos, muda, calada, só sorrisos discretos. E agora você quer me dar ordens?
— Mas…
— Chega! Não quero nem mais uma palavra. Você está na minha casa. Minha! Só minha! E quem manda aqui sou eu e quem eu deixar mandar.
Marcos ficou boquiaberto com a determinação da mãe. O que teria acontecido a ela? Estaria senil?
— Agora vou tomar meu chá da tarde. Quer nos acompanhar?
— A senhora está esperando mais alguém?
— Não.
— Não?
— Não.
— É que a senhora disse nos acompanhar.
— É que descobri, depois de quase 20 anos, que a Cida adora chá. Culpa minha, que nunca havia perguntado isso a ela.
Mesa posta, Adriana, Cida e Marcos se serviram e, apesar do início constrangedor para o homem, ele pareceu se acostumar com a situação. Trocaram amenidades quando a campainha tocou. Cida, como de costume, se levantou, mas foi impedida por Marcos.
— Não, Cida. Deixe que eu atendo.
Não tardou, Marcos retornou.
— Mamãe, é uma moça do censo.
— Pois mande-a entrar. Veja se ela não quer tomar um chá conosco.
Marcos nem fez cara de espanto e, dois minutos após, lá estavam os quatro ao redor da mesa.
— Irene, né?
— Sim, senhora.
— Não precisa me chamar de senhora. Sabia que a minha mãe se chamava Irene?
— Não sabia.
— Gosto muito do seu nome.
— Obrigada.
Quase uma hora após, Irene retirou o questionário da mochila. Uma infinidade de perguntas, mas que se tornaram uma distração para todos, ainda mais quando se chegou a determinada pergunta, cuja resposta arrancou gargalhadas até do Marcos.
— Estado civil?
— Desobediente.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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