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Afeganistão paga pensão por soldado morto (que está vivo) e pede dinheiro de volta

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Na primeira vez em que Noor ul-Haq morreu, seu posto-avançado do Exército afegão foi completamente isolado pelo Taleban em um árido campo de batalha no sul. Centenas de combatentes rebeldes o invadiram, e tudo o que o governo pôde fazer foi enviar os cadáveres para casa.

A mulher e dez filhos de ul-Haq enterraram o corpo, fazendo um monte de pedras sobre a tumba, em um cemitério que rapidamente se encheu com outros mortos de guerra aqui no distrito de Behsud, no leste do Afeganistão.

Assim como outros, eles receberam do governo uma indenização equivalente a US$ 2.300 (cerca de R$ 8.200) –aproximadamente o salário anual de um soldado– para pagar pelo enterro e sustentar a família durante um curto período.

Ninguém sabe quem eles colocaram naquele túmulo, mas não foi ul-Haq. Ele e outro membro de sua unidade, Imamuddin Ibrahimkhel, estavam entre os poucos soldados que foram feitos prisioneiros pelo Taleban em agosto e acabaram sendo libertados pelas forças especiais afegãs.

Suas famílias passaram pelo trauma da notificação da morte, a tristeza de enterrar corpos danificados demais para ser identificados, depois a súbita alegria de saber que seus homens de alguma forma sobreviveram.

Então veio outro golpe: o governo queria de volta o dinheiro da indenização. Os homens foram informados de que poderiam servir mais algum tempo no Exército para ajudar.

“Eles nos fizeram passar pelo juízo final”, disse Ibrahimkhel. “Meu coração chora por causa do que está acontecendo aqui –o que nós passamos, onde servimos, e eles só se importam com o dinheiro do funeral.”

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As famílias de ul-Haq, 39 anos, que se alistou com um contrato de três anos, e Ibrahimkhel, 31, pai de três filhos, estão entre as milhares que foram apanhadas na dura inversão que a guerra no Afeganistão sofreu no ano passado. A sobrevivência dos homens foi relatada primeiro pelo canal afegão 1TV.

Só na província de Helmand, onde os dois estavam destacados, pelo menos 3 mil membros do Exército e da Polícia Nacional afegãos foram mortos nos últimos 11 meses, segundo autoridades afegãs –quase o total das mortes americanas em toda a guerra.

O filho mais velho de Noor ul-Haq, Zia, 23, trabalhava como operário diarista em Jalalabad, no leste do Afeganistão, no último verão, quando recebeu um telefonema dizendo que seu pai tinha sido morto. Acompanhado de dois parentes mais velhos, Zia ul-Haq viajou de ônibus até Cabul, a capital, e recolheu o corpo em um hospital militar.

No caixão estavam os detalhes oficiais da vida do soldado: Noor ul-Haq, filho de Said Amir Jan. Companhia de Artilharia, Segundo Batalhão, Terceiro Regimento, 215º Corpo de Maiwand. Data do martírio: 28 de agosto de 2015.

O corpo foi transportado em uma perua paga pelo governo, e uma multidão enlutada o aguardava quando chegou à casa de barro de três quartos da família no distrito de Behsud, província de Nangarhar. O corpo foi deitado por alguns minutos no aposento das mulheres, lotada. O caixão cheirava mal e foi rapidamente levado ao cemitério. Mais de 300 pessoas fizeram a oração final e o homem foi posto a repousar.

“Sentimos medo de também perder nossa mãe”, disse Zia ul-Haq. “Ela ficou seis ou sete dias sem comer.”

A família do outro soldado, Ibrahimkhel, não teve tanta sorte. Um dia depois que o corpo chegou ao distrito familiar, Charbolak, na província setentrional de Balkh, a mãe de Ibrahimkhel morreu de ataque cardíaco. Três de seus quatro filhos tinham servido o Exército, principalmente na província de Helmand, e agora a família pensou que ela iria unir-se a um deles no cemitério familiar.

Nos dias após o funeral de Noor ul-Haq, seu filho Zia voltou a Cabul para receber a indenização do governo em dinheiro –162 mil afeganes, equivalentes a cerca de R$ 8.200. Um terço do dinheiro foi parcelado em notas pequenas, dez maços delas.

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Algumas das notas maiores estavam tão gastas que o banco se recusou a depositá-las. O banco também recusou as notas pequenas, dizendo que já tinha muito trocado.

A primeira virada veio em uma manhã três meses após o enterro. Zia ul-Haq recebeu um telefonema de um homem com sotaque sulino, perguntando se era o filho de Noor ul-Haq. A princípio Zia pensou que fosse uma brincadeira. Mas o homem tinha informação real: Noor não estava morto, disse ele, e sim em uma prisão Taleban no distrito de Now Zad, em Helmand.

“Minha mãe estava assando pão na cozinha, e eu disse: ‘Papai foi encontrado!'”, lembrou ele. “Todo mundo de repente começou a chorar de novo, de alegria.”

A viagem de 15 dias de Zia ul-Haq para encontrar seu pai o levou ao território profundo do Taleban, ao cinturão do ópio, no sul do Afeganistão. Ele teve de esperar diante de um tribunal Taleban em uma mesquita em Now Zad, enquanto disputas de terra e furtos eram resolvidos por um líder insurgente corpulento, antes que sua visita fosse aprovada.

Depois de suplicar, Zia teve permissão para visitar rapidamente seu pai no antigo prédio da escola que o Taleban transformou em prisão. Noor ul-Haq estava agachado e mal conseguia andar. Mas, a centenas de quilômetros de sua tumba no cemitério de Behsud, ali estava ele, respirando e conversando com seu filho.

O Taleban não o libertou, e Zia voltou para casa sozinho.

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