Haja paciência!
Amarildo, o ranzinza
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Inconformado. Sim, era esse o modo do Amarildo, bancário por profissão, casado com a terceira ou quarta paixão de sua vida, dependendo se incluirmos ou não o amor platônico que teve pela professora no primário. Sem filhos por imposição da correria do dia a dia, era afeito a reclamar de quase tudo. E, caso não encontrasse algo nesse entulho de tudo, tratava logo de arrumar um.
Esmeralda, a esposa, trabalhava no mesmo banco, mas em outra agência. Mulher interessante, porém, possuía o péssimo hábito, desde jovem, de se relacionar com resmungões. Talvez porque fosse o tipo a que estivesse acostumada, já que o pai, os tios e o avô pareciam enxergar o mundo pelo avesso. A mãe até tentou dissuadi-la de se juntar ao Amarildo, mas Esmeralda tinha a resposta na ponta da língua.
— Ah, mamãe, eu sei. Mas o Amarildo beija tão bem.
Pois é, o que parece ter salvado o sujeito foi a arte de saber beijar. Entretanto, mesmo que toda aquela rabugice sempre estivera presente na vida da Esmeralda, chega uma hora em que enche a paciência. E ninguém poderia acusá-la de não ser tolerante, ainda mais porque o marido reclamava até mesmo quando o casal estava tomando sorvete no parque. aos domingos ensolarados.
— Que barulho chato é esse?
— Barulho?
— É! Barulho! Não está ouvindo?
— Amarildo, meu amor, por acaso você está falando do agradável canto daquele lindo sabiá-laranjeira?
— Agradável? Lindo? Aquilo lá parece mais uma matraca. E fique você sabendo que aquilo é até mais feio do que sorriso banguela de criança.
Incrédula, Esmeralda encarou o esposo, balançou a cabeça em desaprovação, levantou-se do banco e foi embora. Amarildo demonstrou surpresa e ainda tentou dizer algo, mas a voz lhe faltou. Olhou o sorvete, que começou a derreter em sua mão. Atirou-o na lata em frente.
Sem coragem de voltar para casa naquele momento, Amarildo foi fazer uma visita de última hora à mãe, que morava a duas quadras dali. Mal entrou, seu rosto o denunciou.
— O que foi, meu filho?
— Nada, mamãe.
— Quem nada é peixe. Vamos, diga-me o que aconteceu, que não nasci ontem.
Depois de contar o ocorrido, Amarildo baixou os olhos, como se querendo sumir. A mulher, sentindo que o filhote precisava ser acarinhado, foi até ele e o abraçou.
— Amarildo, meu filho, tem dia que já nasce noite. Mas isso é possibilidade para acendermos uma vela.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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