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A vida como ela é

Amigos eternos, primeiro a morrer leva último sorriso

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Amigos desde Trás-os-Montes, província histórica de Portugal, companheiros inseparáveis no Brasil do início do século passado e parceiros na brochura, Aristarco Pederneira Araújo, meu avô, Paupereira Frutuoso Amargo e Pacífico Armando Cruz de Madeira viveram no mesmo bairro do Rio de Janeiro e, como dizia o escritor Otto Lara Resende, foram solidários até no câncer. Conforme eles mesmos afirmavam, a brochura é um prazer sem acabamento. Último a partir para o mundo dos imbrocháveis, meu avô, pai de 18 filhos homens, assumia falhas por diversos feitos não concretizados, mas nunca por faltar na hora H. “Das vezes que broxei, sempre foi na hora V, isto é, deixava sua avó no hora veja”.

Naquela época, ninguém pensava em contraceptivos, muito menos em camisinha. Aliás, se houvesse, o velho Pederneira jamais usaria uma. Desabrochado como ele só, se testasse algo do gênero com certeza imaginaria uma touca e cairia em sono profundo. Embora soubesse de sua condição de hipocondríaco em último grau, conheci pouco das amarguras do vizinho Paupereira Frutuoso. Entretanto, lembro de uma vez em que, junto com meu avô, o acompanhei em uma daquelas consultas ao doutor Faim Pedro, médico de metade das famílias de pelo menos três bairros do subúrbio carioca.

Brincalhão e, normalmente sarcástico, doutor Faim ficou meia hora ouvindo as reclamações físicas do velho: “Doutor, tenho uma dor que passa daqui para lá, de lá para cá e, às vezes, daqui para acolá. O que pode ser?”.  Sem rir, mas com uma vontade enorme de gargalhar, o médico respondeu: “Meu nobre, é uma dor passageira, mas vamos cuidá-la”. Outro médico famoso na região quase partiu dessa para melhor ao ser apresentado em uma festa de batizado ao senhor Pacífico Armando. E foi por pouco, muito pouco.

Ainda na igreja, logo após o banho de cuia na criança, o médico perguntou se já havia retirado as amídalas do amigo de meu vô. “Não. Eu ainda as tenho!”. Então, tirei seu apêndice?” “Também não, doutor. Eu ainda vivia em Portugal quando as tirei!” “O senhor já foi casado com a Sônia?” “Fui”. “Eu sabia que já tinha tirado alguma coisa de você”. O tempo fechou. Meu avô precisou interceder e contar ao amigo a fábula do casal de peixinhos de estimação do qual ele cuidava com o maior carinho. “Dei tudo para os bichinhos, mas eles me traíram. Na verdade, a peixa se apaixonou por uma minhoca e o peixe fugiu com uma piranha. Como vê, não somos nada nesse mundo. Nada aqui é nosso”.

A filosofia corneológica de Aristarco Pederneira funcionou. Para arrematar, ele lembrou ao parceiro de brochura que, considerando que é a mulher que põe, nem o chifre é do homem. Passados mais de 50 anos desse feito, continuo concordando com as máximas filosóficas do velho. Ele mesmo experimentou uma situação vexatória desse tipo ao acompanhar a primeira mulher a uma consulta ginecológica. Ficou do lado de fora, é claro. Ciumento como poucos, de cara ele afirmou: “Aposto que ele perguntou dos seus seios?”. “Sim, perguntou!” “E das coxas, perguntou?” “Também” “E do bundão, ele perguntou alguma coisa?” “Não, de você ele não quis saber nada”. Desnecessário dizer que o portuga descasou ali mesmo.

Recasou com minha vozinha, com quem teve os 18 filhos homens, incluindo meu pai. Viveram juntos até o longevo mestre dar o peido mestre, a morte, como se diz em Portugal. Recapitulando, reitero que meu pretérito foi o último a fazer o passamento. Paupereira foi o primeiro. Ele partiu por excesso de bichas. Soube décadas depois que houve acúmulo de lombrigas no bucho. Triste, mas é da vida. Chateado, os amigos Aristarco e Pacífico não saíram da beira do caixão. O pior aconteceu quando o coveiro anunciou que o sepultamento estava atrasado. No corre-corre, meu vô deu uma daquelas soluçadas sem freio e suas dentaduras caíram debaixo da cabeça do defunto. Sem tempo para pegá-las, o vetusto vovô usou de todo bom humor e, ainda soluçando, sussurrou sobre a tampa da urna mortuária: “Vá em paz, meu caro Paupereira. Vá e leve com você o meu último sorriso”. Eita amizade pai d’égua.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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