Oliveira e meu pai
Amigos para a eternidade
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O Oliveira frequentava a oficina desde que eu era criança. Lembro-me, tinha 5 anos e estava na pré-escola no período vespertino. Como minha mãe trabalhava e não tinha com quem me deixar, meu pai me levava pela manhã, bem cedo, já vestido com o uniforme e eu ficava por lá até o horário do almoço. Aí, ele esquentava nossa comida numa pequena cozinha nos fundos e, depois de nos alimentar, me deixava na escola. Ao final da tarde, ela me pegava e voltávamos para casa.
O tempo que ficava na oficina, me entretinha com algum brinquedo, mas ficava observando os carros que chegavam. Adorava quando, para consertar, meu pai precisava tirar o motor, ou desmontar alguma peça grande. Ficava olhando ele mexer com todas aquelas ferramentas. E depois, quando remontava tudo, me encantava ver o carro funcionando novamente.
Eles eram muito amigos desde os tempos em que fizeram o curso de mecânica de automóveis no Senai, nos finais dos anos 1960. O pai montou a oficina logo depois, acho que em 1969 ou 1970. Já o Oliveira, apesar de ter se formado na mesma época, foi trabalhar no ramo imobiliário, mas ele, às vezes, até dava uma mão quando passava por lá. Desde essa época, ele já gostava muito de mim e sempre me levava bala de goma, minha guloseima preferida.
Mas na verdade, já moravam na mesma rua quando crianças. Na turma dos moleques do bairro, Oliveira tinha apelido de “Chinesinho”. A explicação é a seguinte: nascido no acre, veio para São Paulo com 3 anos de idade. Filho de pai seringueiro, que mal sabia assinar o nome, e mãe peruana, da região dos Andes, e em razão dessa miscigenação, tinha feições indígenas, com seus olhos puxados, mas, para os garotos, parecia mesmo um chinês.
Ǫuando adulto, deixou de ser chamado pela alcunha, adotando o último sobrenome. Seu prenome, consequência do baixo letramento dos pais, somente os mais próximos sabiam, era Hieroglifo. Hieroglifo Mamani de Oliveira. A família migrou para São Paulo em 1951.
Fui crescendo e acompanhando o trabalho do pai. Continuei indo à oficina quase todos os dias, mesmo depois de atingir uma idade em que podia me virar sozinho em casa, me alimentar e me preparar para ir à escola, mas com 14 anos comecei a aprender o ofício e acabei por seguir seus passos, cursando mecânica de autos no Senai e, mesmo tendo me formado em engenharia posteriormente, continuei trabalhando com ele.
Alguns anos depois, quando se aposentou, assumi seu posto. Mas ele sempre ia lá para matar a saudade dos seus tempos. O Oliveira, que também se aposentou, continuou frequentando a oficina, havia ficado viúvo e vivia solitário, pois não tinha filhos e não se casou novamente.
Davam alguns palpites, às vezes mexiam em alguns carros, iam até o bar do Português nas proximidades, jogavam dominó ou um carteado e tomavam uma cerveja. Tinham também o costume de colocar duas cadeiras na calçada em frente ao nosso estabelecimento e ficavam por ali tomando sol e conversando durante horas.
Em uma manhã de triste memória, minha mulher estava na cozinha enquanto eu me aprontava para o trabalho, ela me chamou, pois, minha mãe estava ao telefone, muito nervosa, quase não conseguia falar. Ǫuando atendi ela estava se desfazendo em lágrimas, meu pai acabara de sofrer um mal súbito e estava caído no banheiro.
Dirigi-me no mesmo instante à casa deles, mas antes liguei para o serviço de resgate. Ǫuando cheguei a ambulância do SAMU já estava lá e os paramédicos tomavam os primeiros procedimentos para reanimá-lo. Ele foi colocado na unidade móvel e levado ao pronto-socorro mais próximo e deu entrada na emergência, mas infelizmente não resistiu, faleceu em poucos minutos.
Liguei para minha tia, dando-lhe a notícia e pedindo que fosse à casa da irmã fazer companhia a ela, que me esperasse retornar para comunicar o ocorrido e fui cuidar das providências necessárias. Tudo resolvido, voltei para a casa de meus pais, minha mãe aflita já pressentia a situação e não foi fácil acalmá-la.
Em seguida passei a ligar para parentes e amigos para transmitir a funesta notícia e, logicamente, não poderia esquecer seu grande companheiro, o Oliveira. Liguei diversas vezes, mas não atendia, foi quando tive a ideia de passar no botequim do Português, onde eles sempre tomavam a cervejinha e jogavam dominó ou carteado.
Ǫual não foi minha surpresa com a resposta dele. Disse-me que o vira pela última vez naquela manhã. Ele estava sentado junto a meu pai, em frente à oficina. Conversaram por um bom tempo e depois saíram caminhando, rua abaixo. Expliquei que isso era impossível, ele deveria estar enganado, pois meu pai falecera na mesma manhã. O Português fez o Sinal da Cruz por três vezes, e falou:
– Meinhanossassenhoradyfatma, antão eu vi um fantaijisma!
Como sempre fui cético e não sou dado a essas crendices, além do mais, bastante impactado com o acontecimento do dia, deixei ele falando sozinho e me fui conjecturando:
– O pessoal da vizinhança tem razão, o Português está mesmo ficando gagá.
Mas não podia deixar de avisar o Oliveira, afinal eram amigos tão próximos e a tanto tempo. Resolvi, então, passar na casa dele, embora fosse bem distante. Ao chegar, constatei com surpresa porque não atendeu minhas ligações, uma péssima coincidência: o local estava cheio de gente aglomerada à porta. O Oliveira também havia passado mal e antes que os vizinhos o pudessem socorrer, veio a falecer. Como disse, ele era sozinho, viúvo, sem filhos e não tinha parentes próximos. Assim, por questão de humanitarismo e como homenagem à amizade entre ele e meu velho pai, retomei a via-sacra dos procedimentos burocráticos funerários.
Agendei o mesmo local para o velório e reservei uma vaga no jazigo de nossa família, meu pai, sabe-se lá por que, não queria ser cremado. Assim seguiram os dois, como na vida, parceiros para o além. Na lápide, adivinhando um desejo contido dele, não permiti que registrassem seu prenome, fazendo constar apenas “Oliveira”.
Os espíritas dizem que as pessoas, logo ao desencarnarem, se apegam aos lugares que gostavam de estar em vida. Refletindo sobre isso cheguei à conclusão de que talvez o Português não estivesse tão gagá assim. Afinal, achar que viu um fantasma é pouco crível, mas ver dois ao mesmo tempo, aí, deve ser verdade!