Ninguém quer discutir
Anistia vira jogo de empurra e estica corda
Publicado
em
Pouco se falou, e quase nada se pensou, sobre o que de fato é a anistia. O debate público nunca saiu da superfície. A palavra virou rótulo, senha de pertencimento, instrumento de disputa. Discute-se quem ganha e quem perde com ela. Raramente se discute o que ela significa.
A anistia não é absolvição moral, nem certificado de virtude. Também não é prêmio. É um mecanismo político criado para interromper ciclos de conflito quando a sociedade percebe que continuar punindo já não resolve mais nada. Ela não apaga a memória, mas suspende a vingança institucionalizada. É menos sobre o passado e mais sobre o futuro.
O problema é que o Brasil nunca tratou a anistia como um pacto social. Tratou como ato tático. No final da década de 70, foi defendida por quem compreendia que o país precisava virar a página, mesmo sem concordar com tudo o que estava escrito nela. Hoje, muitos desses mesmos atores rejeitam a ideia, não porque ela seja conceitualmente errada, mas porque o destinatário mudou de lado.
O debate deixa de ser ético e passa a ser tribal. Nós contra eles. Democratas contra inimigos da democracia. A anistia só é aceitável quando protege os nossos. Quando alcança os outros, vira afronta, ameaça, retrocesso civilizatório.
Há algo profundamente infantil nesse comportamento. É a lógica da punição como afirmação identitária. Puni-se não para corrigir, nem para pacificar, mas para sinalizar virtude ao próprio grupo. A pena vira linguagem política. O sofrimento do outro passa a ser prova de que estamos do lado certo da história.
Do ponto de vista sociológico, isso revela uma sociedade que não sabe lidar com conflito sem recorrer à exclusão. O inimigo precisa ser mantido como inimigo, porque sua reintegração desmonta a narrativa. Se o outro volta ao convívio social, a fronteira moral se desfaz. E sem fronteira, o discurso perde força.
Sob um olhar mais filosófico, a anistia incomoda porque desafia a noção confortável de justiça como revanche. Ela exige maturidade coletiva. Pressupõe que a sociedade seja capaz de dizer: erramos, exageramos, seguimos adiante. Isso é difícil num ambiente político viciado em clímax permanente, onde cada episódio precisa ser tratado como o último ato de um drama épico.
No fundo, o que nunca esteve em pauta foi a pergunta essencial. Queremos punir para sempre ou reconstruir? Queremos memória ou ressentimento? Queremos justiça como valor ou como instrumento?
No fim das contas, o problema nunca foi a anistia. O problema é que ela interrompe o jogo. Sem inimigo permanente, sem punição exemplar, sem a catarse do castigo, sobra apenas a pergunta que ninguém quer responder: e agora, o que fazemos como sociedade? Talvez por isso tantos prefiram manter o conflito vivo. Ele é moralmente confortável. Pensar o futuro dá mais trabalho.
