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FORTUNA DE BOLSO

Ao cair da tarde, um médico cercado de bens inveja a leveza do carroceiro

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

— Êia, Estrela, êêêia…

No vasto jardim, em frente à linda casa de campo do Doutor Mendes, Vicente, que acabara de limpar o terreno após a poda das plantas, virava em direção à saída a modesta carroça puxada por uma égua baia, repleta de galhos e folhas.

Era um sábado, fim de tarde, Mendes se aproximava do carroceiro para pagar pelo serviço. Entregou-lhe a nota, que Vicente juntou a um rolo de algumas outras retiradas do bolso da calça.

— Obrigado, doutor. Da próxima vez eu venho mais a miúdo, pra não juntar tanto mato no jardim do senhor. As plantas cresceram muito desta vez. E vem chuva aí.

Mendes observava seu interlocutor. Simples, com o corpo magro, arqueado pelas duras fainas da vida, vestido com uma calça larga e uma camisa amarela de mangas compridas, surrada, a pele do rosto queimada de sol, envelhecida, a ostentar um grande bigode que cobria a boca, barba grisalha, em desalinho. Tinham mais ou menos a mesma idade, haviam crescido na cidade. O pai de Vicente também fora trabalhador naquela casa, a qual Mendes, de postura correta, roupa impecável e alva, bigode rigorosamente aparado, herdara.

A vida do Doutor Mendes era, agora, no Rio de Janeiro. A casa se transformara em refúgio para os finais de semana ou veraneios, em que conseguia, com a família completada por esposa e dois filhos, subir a serra a bordo de seu grande automóvel de luxo.

Vicente, de vida humilde, morava numa simples casinha, a alguns quilômetros dali, sozinho, e usava a carroça e sua égua Estrela para ajudar-lhe na prestação de serviços nas muitas casas de veraneio da região, podando árvores, cuidando de jardins, fazendo pequenos reparos.

Passou-se pela cabeça do dono da casa um certo enfado. Tanto trabalho, tanta necessidade de manter o lugar, cujos reparos, podas e cuidados jamais bastavam. E não era só isso. Havia também a residência no Rio, um apartamento enorme em Botafogo, com quatro quartos e duas empregadas, o consultório em que exercia a clínica médica, no centro da cidade, com a secretária, um reino do pequeno burguês, e a mulher, recentemente, lhe revelara uma vontade.

— Ah, como seríamos felizes se tivéssemos uma casinha na praia. Algo para os meninos aproveitarem, estarmos em contato com o mar, o sol…

Ora essa, e a casa da serra já não bastava para isso? Era o caso de construir uma piscina, aumentar-lhe o uso, estimular que os garotos ficassem mais soltos. Mas refletiu e ocorreu-lhe que talvez fosse uma péssima opção. Piscina. Um gasto a mais, nova coisa para cuidar. Se a deixassem cheia, e não frequentassem a casa com a regularidade necessária, a água ficaria esverdeada, insalubre… Haveria de ser mais um trabalho para o velho Vicente. O homem cuidava também de piscinas?

Mas, e se lhe entrasse mesmo na cabeça a cisma de terem outra casa, agora na praia? Os gastos que cresceriam…

Era apenas Mendes a prover tudo. E tudo custava muito, gastava-se muito.

A ideia da casa de praia era péssima, um absurdo. Demoveria a esposa da maquinação esdrúxula se viesse novamente com tal conversa. Um imóvel a mais era impossível. Racionalmente, poder-se-ia escolher o que faria a família mais feliz, vender a casa de veraneio de Petrópolis e adquirir a do litoral – nos últimos tempos os garotos não gostavam tanto mais de subir a serra a bordo do automóvel de luxo para passar os finais de semana sempre iguais – mas era apegado ao antigo imóvel, onde passara a infância, onde seus pais moraram até o fim. A venda não, isso estava fora de cogitação.

Entrou a imaginar como seria a vida de Vicente. Lembrou-se do instante em que, pagando-lhe mais uma capina feita, prenúncio de várias outras ainda por fazer, o homenzinho colocara a nota junto a outras, tiradas do bolso, reunidas num rolinho bem formado. Seria aquela toda a fortuna do carroceiro? Provavelmente. E a levava sempre consigo porque decerto não tinha um lugar seguro no casebre humilde, à beira da ravina isolada, para guardá-la de visitantes inoportunos. Uma fortuna que cabia no bolso da calça larga.

Para Mendes, cuja fortuna fora, em parte herdada, e noutra parte conquistada com o trabalho intenso, um bolso, dois bolsos, eram insuficientes. O banco era o lugar certo para guardar seu dinheiro. Um dinheiro que estava em cédulas de crédito, em ações ao portador, em fundos cambiais. Mas um dinheiro que nunca vira, reunido, em suas mãos, apesar de estar cercado de coisas valiosas, de obrigações caríssimas, de compromissos inadiáveis que lhe custavam labor e vida, muita vida.

Desejou ser menos escravo das coisas e ser livre como o carroceiro. O pobre Vicente passaria necessidades? Teria ele vontade de possuir coisas como o Doutor Mendes? Sentir-se-ia escravo delas se as tivesse em quantidade, ou as aproveitaria intensa e livremente como sonhava fazer o médico, se lhe sobrasse mais tempo?

A dura realidade era que nem mesmo na casa enorme, cercada de belo jardim, agora bem arrumado, vinha se sentindo pleno e feliz. Visitava-a por hábito ou por obrigação. Tinha a sensação de que, se não estivesse ali, usando-a com a família, não valeria a pena gastar tantos recursos – e tempo – na sua cara e difícil manutenção.

Fora melhor ter herdado a casa, pois o peso de não a haver comprado era mais leve. O encargo viera da sorte e da fortuna de seus maiores, não da aspiração individual do homem adulto e próspero, cujo delírio é, às vezes, mais grandioso, e se materializa na forma de um sítio, ou mesmo de uma fazendinha.

Não, aí já seria demais.

Mendes via, ainda, o carroceiro conduzir sua carroça, puxada pela égua Estrela, em direção à saída da propriedade. Sobre eles, o céu já armava o cenário da noite fria, próxima. Sol e lua se mostravam juntos no firmamento.

Os filhos, entediados, brigavam por algo na grande varanda de piso vermelho e encerado.

A mulher vinha em sua direção, com uma revista nas mãos.

— Veja, querido, este anúncio de secador de cabelos. Preciso tanto de um secador de cabelos… Pena que nesta roça aqui não tem sequer um magazine.

O automóvel de luxo permanecia lá, sobre o gramado, estacionado. Era reluzente, lindo, enorme.

Vicente seguia pela estradinha, alguns pedaços de tronco e folhas iam caindo pelo caminho, e ele dizia:

— Êia, Estrela, êêêia…

………………….

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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