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Crianças

Aos cinco anos, Vânia teve seu primeiro desencantamento

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Aos cinco anos, Vânia teve seu primeiro desencantamento, deixou de acreditar em Papai Noel.

Tamanha precocidade se explica: na noite de Natal, levantou-se de madrugada para ir ao banheiro, ouviu barulho na sala, correu para lá, pensando encontrar o bom velhinho, e viu os pais depositando presentes sob a árvore.

– Ah ah, são vocês! Papai Noel não existe!

A mãe a encarou, severa.

– É, não existe. Mas sua irmãzinha acredita em Papai Noel. Se você contar a ela, vai levar a maior surra de sua vida.

Vânia a encarou, viu que a mãe falava sério e achou mais prudente guardar silêncio. O pior foi que a bobinha da Eda, então com dois anos, acreditou em Papai Noel até os oito!

Descrente da magia, Vânia passou a examinar com olhos críticos tudo relacionado às festas natalinas. Não tinha idade para perceber a dimensão comercial da coisa, mas achou legal toda a família se reunir na casa da avó, para a ceia. Tampouco notou a falsa cordialidade reinante na ocasião, as primas que a beliscavam sempre dirigindo-lhe sorrisinhos meigos, os pais fazendo o equivalente disso em chave adulta… Afinal, não se pode esperar de uma criança de cinco anos instigantes análises psicológicas.

Um aspecto que sempre a entristecia nessas ocasiões eram as canções de Natal. Havia uma, em especial, que a levava às lágrimas: Anoiteceu, de Assis Valente. Fala de alguém que pede a felicidade ao velhinho de barbas brancas e não é atendido. Jamais esqueceu o verso que mais a comovia: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”. Não era, Vânia compreendeu. Os pais de muitas crianças não tinham recursos para comprar comida suficiente, quanto mais brinquedos para os filhos.

Depois disso, a menina examinou criticamente a profusão de bonecas que ganhara e continuava a receber, algumas quase esquecidas, substituídas por outras recém-presenteadas, e concluiu:

– Criança não precisa de muitos brinquedos, criança precisa brincar!

Após essa constatação, pediu aos pais, para os Natais seguintes, uns dois bonecos de garoto, alguns soldadinhos de chumbo e bolinhas de gude. O casal ficou preocupado, eram coisas de menino…Mas atendeu e, sem esperar dezembro, deu-lhe os presentes pedidos, bem mais baratos que a boneca de porcelana que pretendia comprar. A menina ficou radiante, passou a reproduzir cenas de adultos (não transas, não fazia ideia do que se passava entre quatro paredes), lances das guerras que via na TV, coisas assim. Compreendeu que a imaginação era o ingrediente essencial a qualquer brincadeira, capaz de transformar uma latinha amassada em um bólido de Fórmula 1. E treinou muito com suas bolas de gude, até poder desafiar os garotos da rua, vencer algumas partidas, perder outras, e ser aceita pela molecada.

Aos quinze anos, Vânia teve seu segundo grande desencantamento, acreditou no velho papo, “Vou só colocar a cabecinha”.

Mas a dor logo deu lugar ao prazer, a adolescente descobriu que gostava do fuzuê.

O mundo se reencantou.

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