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Meninices

Apontamentos de um menino descobrindo as dores e as delícias da primeira infância

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

-J. , passa o pano no piso da área de serviço para mim, estou muito ocupada na cozinha agora.

-Sim, mãe, já vou passar!

-Mas passa bem passado para deixar tudo bem seco.

-Já passei, mãe, pode olhar!

-E aquele pedaço onde bate o sol, por que não passou o pano lá?

-Então…lá o sol mesmo seca, né?

Dona áurea, perplexa, fechou a cara e soltou:

-É,J., lá o sol seca!

A seguir, com uma prodigiosa vara de marmelo em uma das mãos, aplicou duas chibatas certeiras nas minhas pernas antes que eu pudesse correr para o pátio.

-Deixa de ser preguiçoso e vai secar isso direito, menino!

Primeira lição aprendida através de uma experiência que juntou amor e dor: não exagere nas justificativas para aplicar a lei do menor esforço.

O episódio descrito ocorreu quando eu tinha seis anos de idade, mas outros, igualmente vividos na fase do que chamam primeira infância foram muito importantes para ilustrar o meu didático caderno de apontamentos formatado nessa doce e inocente(?) fase da vida.

Outra passagem absolutamente inesquecível atende pelo nome de Rosane, minha vizinha e primeira grande paixão lúdica. Eu tinha cinco anos, ela, cerca de dez. Lembro dela em flashes intensos e fugidios, vestido rosa, perfume inebriante e tiara preta.

-Rosane, eu quero um beijo!

-Não dá J., aqui na calçada tem muita gente olhando.

-Tá, então vamos ali, atrás do muro da minha casa.

-Tá…mas tem que ser rapidinho.

-Certo, então vamos logo! falei, afoito.

Um segundo depois do primeiro beijo da minha vida, senti uma dolorosa batida nas nádegas e pensei: – então essa é a sensação?

Mas era apenas a dona Áurea de chinelo na mão, zelando pela moral e pelos bons costumes do espaço.

Rosane correu para um lado e eu para o outro. Até dona Áurea esquecer da situação embaraçosa, tivemos que ficar um mês sem nos falarmos.

Lição número dois: nunca deixe a retaguarda desprotegida no campo de batalha.

Outro caso mais remoto que não sai da minha memória afetiva aconteceu quando eu tinha entre três e quatro anos, logo antes do seu José, meu pai, falecer devido a um AVC.

Ele era conhecido em toda a cidade como “Seu Brinquedo” pelo bom humor e habilidade para fazer “brincadeiras” com os mais chegados.

Lembro que um rapaz que tinha alguma relação comercial com meu pai foi a nossa casa para algum tipo de tratativa profissional. Após terminar a rápida conversa entre os dois, o rapaz despediu-se formalmente:

-Então, até logo, seu Brinquedo!

De súbito, eu entrei no meio dos dois e, despropositada e intuitivamente, falei :

-E brinquedinho!

-Vocês ouviram o que ele disse? Esse menino tem por quem puxar, admirou-se o interlocutor do meu pai.

Muitos anos depois, entendi que todos pensaram que eu estava reclamando do fato do rapaz não se despedir também de mim, do “Brinquedinho”, filho do seu Brinquedo.

Todavia, eu não era tão perceptivo assim e não foi essa a intenção da minha observação, na verdade, eu nem sei bem porque falei aquilo.

De qualquer forma, ficou a terceira lição: entre uma verdade cinzenta e um mito reluzente, publica-se sempre o mito.

Dentre outras situações de aprendizado, recordo de uma que, definitivamente, encerrou a minha primeira infância de modo bem marcante. Na minha memória, a história ficou registrada como “a briga com o Ruffo”.

Aconteceu quando eu estava cursando o primeiro ano primário em um tradicional colégio da minha cidade natal. Na metade do ano letivo todos na turma já estavam relativamente adaptados, tínhamos superado o medo da nossa nova situação de vida.

Entretanto, não lembro o motivo – ou se houve motivo – um colega descendente de uruguaios chamado Ruffo (não recordo o primeiro nome) implicou com a minha cara desde o primeiro dia de aula.

Em curto tempo, ele despontou como o “xerife” da turma. Baixinho, mas forte e entroncado, ninguém ousava discordar dele e, muito menos, falar grosso com o “castelhano”, como era chamado por todos.

Certo dia, ele deu uma resposta errada para a professora e, devido à comicidade da situação, praticamente toda a turma riu.

Todavia, Ruffo viu apenas o J. praticar o reprovável bullying [ acho que na época chamávamos de “troça”].

Aí foi tiro e queda: na hora, ele rosnou que iria “me esperar lá fora”, promessa implícita de briga no jargão da época, código ainda válido em alguns ambientes dos nossos dias.

Senti que o primeiro desafio [situação-limite na linguagem de Sartre] da minha vida se aproximava e não havia como contornar a situação.

Como bom capricorniano, refleti sobre o contexto da coisa e sobre todas as suas nuances.

Eu não temia a briga em si, pois sabia que tinha condições físicas e habilidade para levar a coisa, no mínimo, a um empate técnico.

O que eu não queria era passar pelo constrangimento de uma briga em frente à escola e suas consequências sociais: castigo por parte da diretoria do colégio [suspensão na certa], bronca e prováveis chineladas da dona Áurea, fama de briguento, etc.

Aparentemente, Ruffo não era capricorniano, pois não pensava em nada daquilo e, assim que saímos pela porta da frente, ele já queria iniciar o embate físico.

Eu falei que não iria brigar em frente ao colégio e convidei o exaltado colega para nos afastarmos e, com calma, resolvermos a situação longe das vistas da direção e dos professores.

Mas ele tomou a proposta como covardia e começou a me insultar em altos brados:

-Covarde, frouxo, amarelão, tá com medo!

Tive sangue frio suficiente para me afastar e pedir que ele me seguisse. Após caminharmos por uns trezentos metros com ele me xingando e, seguidos por uma plateia de mais ou menos trinta colegas, achei que a distância já era suficiente para evitar a repercussão da briga e suas indesejáveis consequências.

Então, parei, entreguei a minha mochila escolar para um amigo e falei:

-Agora vamos lá, seu merdinha metido a bonzão!

Ruffo arregalou os olhos, surpreso, pois, na cabeça dele, eu estava morrendo de medo e iria fugir da briga.

Eu sabia que ele era muito hábil com as mãos, um boxer treinado pelo pai ex-pugilista, segundo diziam.

Mas eu tinha um trunfo secreto: treinava no recesso do lar o estilo de luta kung-fu, no qual se usa basicamente as pernas, estilo que alguns anos depois iria ficar célebre com o mitológico Bruce Lee.

Resumindo a ópera, o uruguaio não teve a menor chance. Sem conseguir se aproximar de mim para aplicar a sua técnica de boxeador e, depois de levar vários chutes certeiros das minhas rápidas e bem treinadas pernas, o valentão arregou, falando:

-Assim não vale, né?

Entendendo que ele estava buscando uma saída honrosa para a situação vexatória, falei:

-Por mim já está bom, vamos deixar por empate?

Com um olhar agradecido, ele disse:

-Tá bom, empate, então!

Então, cada um foi para o seu lado, enquanto a torcida se dispersava.

No dia seguinte, a vida seguiu normal no colégio, com a única novidade de não haver mais “xerife” na turma do primeiro ano.

Última lição – a lá Guimarães Rosa – do meu caderno de apontamentos da primeira infância: a vida requer sensatez e equilíbrio, mas sobretudo, coragem!

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