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Velhinho esperto

Aristarco cantava Elba de trás para a frente

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Prdução Editoria de Artes/IA

Conhecida em uma determinada região da Itália, a “panhoca”, apesar de iguaria feminina, é um tipo de pão produzido com trigo de grão duro, grande, redondo, com crosta grossa, miolo macio e levemente poroso, ideal para servir com molhos e caldos. Tudo a ver com meu avô paterno Aristarco Pederneira, o velho que desbravava desafios desconhecidos com a calma e a leveza que somente a idade oferece. Sua embalagem estava meio gasta fazia tempo, mas o conteúdo era pura energia, sem a necessidade dos energéticos químicos e vantajosos somente por cinco ou dez segundos.

Com Aristarco, o trem só começava a apitar depois de uma hora e meia de lenha. Aos vizinhos que se assustavam com os gritos da vovó, ele abria a janela e sorrindo dizia: “Eu já não sou o mesmo, mas ainda sou eu”. Os que eventualmente duvidavam da audaciosa performance do portuga de Trás os Montes preferiam correr a enfrentar o chocalho da cascavel. E tudo por causa da “panhoca” da vovó Anastácia Pederneira. É claro que não era mais aquela “panhooooooca”. No entanto, o velho esperto e fogoso não abria mão da libidinosa iguaria. Ele parecia um menino na degustação da “panhoca”. Gostava tanto que chegou a pensar em abrir uma padaria para negociar o negócio de vovó.

Sangue bom, desistiu do investimento porque teve medo de queimar a rosca. Se ela bobeasse, ele panhocava de manhã, à tarde e à noite. De madrugada, vovó era obrigada a se trancar no quarto para não ser incomodada. De vez em sempre, minha avó deixava porções prontas na soleira do forno de lenha. Cúmplice da safadeza mental de vovô, ela dizia que as “panhocas” aumentavam a força bruta e o bruto do velho. A panhocação ocorria um dia sim e outro também. Certa vez vi com meus próprios olhos o modus operandi do safardana na concentração imediatamente anterior à panhocagem.

Foram quatro voltas na cama redonda, 22 flexões, 14 abdominais reversos, 18 abdominais solo, 26 cangurus e meia hora de bicicleta no ar. Cumprido o religioso compromisso físico, vovô estava exausto, porém ereto. Nesse dia, pensei em chamar o Samu, mas fui contido pela consciência. Me surpreendi quando, após um agachamento com pulo, seguido de um giro russo, o velho adentrou o ringue e exigiu de vovó mais uma generosa porção de “panhoca”.

Devido à sua baixa intensidade, à tosse pelas duas bocas e ao excesso de afazeres domésticos, a véia não tinha mais força para uma “panhoca” e meia. Era uma “panhoquinha” e negócio fechado. No fim daquela noite, além de um robusto escalda pé, minha linda Anastácia teve de ser rebocada três vezes para o chuveiro de água fria. Nada que a desestimulasse. Na noite seguinte, tudo como dantes. “Panhoca” daqui, “panhoca” dali, viveram juntos, à moda portuguesa, por quase 65 anos.

A pedidos, está escrito na tabuleta do jazigo perpétuo onde jazem: “Aqui a “panhoca” continua bitela, macia, com a crosta grossa, macia por dentro e não cessa”. Ainda hoje, faço minha a “panhoca” de vovô e vovó. O melhor de tudo é que a convivência com ambos me ensinou a diferença entre ser idoso e velho. Para Aristarco e Anastácia Pederneira, o tempo até que passou rápido, mas a velhice nunca os alcançou. A lição é simples e merece ser repassada: Que todos os idosos vivam uma vida longa, mas nunca fiquem velhos. Quanto aos velhos, aprendam a ser idosos.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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