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Caçadora

Ártemis e Órion

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ela era caçadora, mas não abatia animais e sim poetas eróticos. Frequentava saraus literários para encontrar suas presas.

Nessas ocasiões, usava o nome de Ártemis, a deusa da caça da mitologia grega. Era uma sutil advertência para suas futuras vítimas, uma oportunidade para que desconfiassem da conquista demasiado fácil e se resguardassem. Porém muito poucos o faziam.

O esquema não variava muito. Ártemis dirigia-se a seu campo de caça, o sarau, afivelava no rosto uma expressão sensível e inteligente para disfarçar o tédio e ficava escutando poetas e poetisas falarem de Amor, do Ser, da Natureza, de Deus (tudo com uma maiúscula inicial) e por aí vai. Uma baboseira. De tempos em tempos, porém, alguém declamava versos com imagens fortes, do tipo orifícios profanos (ou divinos, tanto fazia, o importante eram os orifícios), lança em riste, vulcões jorrando a lava dos deuses, coisas assim. Ártemis despertava, a máscara caía por terra, seus olhos brilhavam de interesse e excitação. No fim do sarau, ela se aproximava da vítima, dizia seu nome, que tinha adorado o poema. E implorava que ele recitasse suas criações num local privado, só pra ela… Lisonjeada, a presa sempre aceitava.

O abate em geral ocorria num hotel próximo, ou no apartamento de Ártemis. Ela dominava a transa e, literalmente, esgotava o parceiro.

Três poetas já haviam morrido em pleno ato. Outros sobreviviam, mas ficavam meses sem fazer, recuperando-se, e a partir daí trocavam a poesia erótica, perigosíssima, por temas religiosos ou filosóficos. Ela, em contrapartida, ficava cada vez mais bela e mais jovem. Fazia aquilo há muitas centenas de anos, e pretendia continuar por toda a eternidade.

Certa noite, num sarau, Ártemis avistou um homem atraente, que trazia afivelada no rosto uma expressão de sensibilidade e inteligência – tão falsa quanto a dela.

“Aquele filhodeumaégua tá fingindo, que nem eu”, pensou.

No final, dirigiu-se não ao poeta erótico da vez – sorte dele e sorte dela, era um velho feio pra dedéu –, mas ao desconhecido.

– Boa noite. Meu nome é Ártemis.

– O meu é…

– Vou chama-lo de Órion.

– O caçador, companheiro de Ártemis e seu único amor – completou o homem.

“Deuses, ele conhece mitologia! Os imbecis dos poetas daqui nem se tocam!”

Órion preparou a seta, mas Ártemis foi mais rápida:

– Gostaria de conversar com você num lugar mais discreto. Acho que temos muito em comum.

Entraram no primeiro hotel. Ártemis aproximou-se, os lábios entreabertos, mas Órion e a afastou.

– Quer transar? Eu topo. Mas nada de usar seus poderes para me esgotar.

Também não vou usar os meus para a esgotar. Vamos fazer um amor inesquecível, como semideuses. Você é uma semideusa, não?

– Acho que sim – respondeu Ártemis, num fio de voz.

Quando o embate terminou, Ártemis disse ao parceiro:

– Órion, adorei, mas nossa sobrevivência depende da energia vital de nossas vítimas. Então vou continuar a caçar…

– E se caçássemos juntos? Era o que faziam, nos bosques da Hélade, a Ártemis e o Órion originais. Conquisto uma otária, você seduz um otário, sugerimos uma festinha e eles topam na hora!

– E, se um deles não quiser, o outro ou a outra não vai resistir à expectativa de um ménage – completou Ártemis, entusiasmada.

Desde esse dia, as fileiras de poetas eróticos diminuíram sensivelmente. Mas, graças aos deuses, o gênero e seu adeptos sobrevivem. Afinal, Ártemis e Órion precisam se alimentar.

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