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Era um tempo de chuvas mais fortes

Árvores são atingidas por raios: ressaca de um mundo partido

Publicado

Autor/Imagem:
Sarah Munck - Texto e imagem

Na tempestade, não se abrigue debaixo da árvore.

Essa era uma frase corriqueira na minha infância. Naquele tempo, minha casa, em Minas Gerais, ficava ainda mais cercada pelo verde. As chuvas também vinham com mais força. Eram, na verdade, quase um ritual: o vento assoviando os telhados, a terra cheirando as narinas, o sinal de alerta dos animais e, é claro, o céu quadriculado de relâmpagos e nuvens beringelas.

Chover, para mim, sempre foi um espetáculo. Gostava (e ainda gosto) do que via e sentia. Mas houve dois episódios, em datas distintas, que me marcaram de forma intensa: a primeira árvore, atingida por um raio, aparentava estar intacta à primeira vista, mas morreu poucos meses depois, sem aviso. A segunda, por sua vez, atingida com violência visível, sobreviveu, apesar da cicatriz longa e estreita que riscava seu tronco ao meio, separando-a em dois pares que já não se reconheciam.

A questão é que, minhas caras e meus caros leitores, árvores são atingidas por raios.

Entre a falha e a potência: O Visconde Partido ao Meio e a cisão que paralisa

O Visconde Partido ao Meio, romance breve de Italo Calvino, foi publicado em 1952.

A narrativa acompanha um nobre italiano, Medardo de Terralba, que, ao ser atingido por uma bala de canhão durante a guerra, torna-se fisicamente dividido ao meio. Uma de suas metades, a má, é que assume a pessoalidade e passa a governar com extrema crueldade e tirania. Mais adiante, o leitor descobre que o outro lado também sobreviveu, perambulando em indubitável pureza. No entanto, as duas metades, incapazes de estabelecer laços, vagam em extrema solidão.

Esses fenômenos da fragmentação física simboliza a cisão subjetiva e a dificuldade de integrar as contradições internas que habitam o ser humano, tema que dialoga com conceitos da psicanálise, como a integração da sombra e a busca pela totalidade do self.

E quando a expressão literária vivência essa mesma ruptura?

E quando nos encontramos partidos entre a exigência da perfeição e o medo do erro?

Ora, hora ou outra, ela vem: a autossabotagem, sorrateira, como um raio. Já me vi meses sem escrever, sem motivoaparente. Aqui, talvez, more o perigo: o silêncio enraizado. Esse silêncio, que corrói internamente, pode sercompreendido como um bloqueio criativo, um fenômeno amplamente estudado na psicologia da arte e da criatividade,em que o medo e a autocobrança impedem a manifestação do potencial criativo.

Como uma árvore que, livre de ataques visíveis, foi morrendo por dentro, seu sistema radicular enfraquecido por mazelas ocultas.

Na novela de Italo Calvino, o narrador, uma criança, sobrinho do visconde, imprime à trama um tom lúdico que, brilhantemente, esconde a densidade simbólica da obra. O escritor constrói uma fábula sobre a fragmentaçãosubjetiva.

Quem sabe, a obra nos revela o peso de querer ser inteiro.

A verdade é que nenhuma das metades de Medardo é plenamente humana. Um lado é puramente destrutivo. O outro, tão virtuoso, torna-se insuportável. Somente quando as duas se fundem é que o personagem retorna à condição de ser verdadeiramente humano.

Aceitar a imperfeição como parte da criação

Escrever, talvez, seja isso: reconhecer que a verdadeira criação artística nasce da própria condição humana, calar-se e revelar, habitar a falha mirando a potência. O escritor, particularmente, assim como o visconde, amadurece entre o que vive e aquilo que deseja nomear. E é no desejo de reunir essa dualidade que a escrita se torna infinita.

Aceitar a imperfeição é reconhecer o gesto contraditório, humano e inacabado da escrita. Um processo descrito por diversos teóricos da criatividade como pare essencial da produção artística.

Poema de Mahmud Darwich (1941 – 2008)

Em março as plantas têm perfume. É quando os elementos se casam. “Março é o mais

duro dos meses” e o mais libidinoso. Que espada atravessa meus soluços e meus

suspiros e não se quebra? Esse é o meu abraço agrícola no apogeu do amor. É como eu

saio para a vida.

Enrolem-se, plantas, e juntem-se à intifada do meu corpo e à volta do sonho ao meu

corpo.

A terra explodirá enquanto confirmo esse grito contido à irrigação e à timidez campesina.

Em março chegamos à obsessão das memórias, e as plantas crescem em nós brotando

em todas as direções. É como crescem as lembranças. Chamo de lembrança minha

subida no cinamomo*.

Vi uma menina à beira do mar há 30 anos e disse: Eu sou a onda,

e ela se afastou na lembrança. Vi dois mártires escutando o mar: Acre vem com a onda.

Acre vai com a onda. Os dois se afastam na lembrança.

Ḫadīja inclinou-se em direção ao orvalho, e eu me queimei. Ḫadīja! Não feche a porta!

Que os povos entrarão neste livro e o sol de Jericó se esconde sem cerimônias.

Nação de profetas… seja inteira!

Nação de semeadores… seja inteira!

Nação de mártires… seja inteira!

Nação de refugiados… seja inteira!

Cada caminho das montanhas é uma extensão desse canto.

Todas as canções em você são extensões de uma oliveira que me envolve.

*Espécie de árvore conhecida como Amargoseira.

CHARETI, Alexandre Facuri. Folhas dispersas das oliveiras: da poesia de Mahmud Darwich e Jabra Ibrahim Jabra. Criação & Crítica, São Paulo, [s. n.], p. [19–29], ago. 2020. Disponível em: http://revistas.usp.br/criacaoecritica. Acesso em: 13 maio 2025.

O poema reforça a ideia de inteireza, de força e de memória que crescem mesmo diante das fragmentações e das lutas, dialogando diretamente com a temática da imperfeição e da busca pela completude, como na obra de Calvino.

Em meio ao sofrimento humano, às guerras e às divisões que marcam nossa história, as árvores permanecem como testemunhas silenciosas, carregando em suas cicatrizes a memória das dores coletivas, e nos lembram da urgência de cicatrizar nossas próprias feridas internas e sociais.

Entre as feridas abertas do nosso tempo, está a Palestina. Terra de profetas e mártires, como canta Mahmud Darwich, é também território de dor e de resistência poética. Assim como a árvores atingida pelo raio, sua história é transpassada por cortes profundos, mas também por raízes que insistem crescer, mesmo sob escombros.

Que possamos aprender a ouvir a natureza com novos ouvidos, reconhecendo nela um saber que a linguagem humana muitas vezes perdeu.

“As árvores sabem linguagens que desaprendemos” (Manoel de Barros).

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Sarah Munck, mineira de Juiz de Fora, professora do IF-Sudeste, escreve no Substack sarahmunck.substack.com, e é autora do livro de poemas “O Diagnóstico do Espelho”, disponível aqui: https://mondru.com/produto/o-diagnostico-doespelho/?srsltid=AfmBOoosuyBea-zGNuM0gkMocZRgrHmNos8rpReWGzkaafAEVKXr6Y2G)

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