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Aconteceu de verdade

As aventuras do Capitão Inácio

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Autor/Imagem:
Plínio Pavão - Foto Francisco Filipino

Ele nasceu em 1930 na favela do morro de Padre Miguel, no município do Rio de Janeiro. Filho de empregada doméstica e pedreiro, desde muito pequeno começou a trabalhar como engraxate para ajudar na manutenção do barraco e no sustento da família composta ainda pela mãe, o pai e duas irmãs mais novas.

A vida, embora nunca tenha sido fácil, piorou significativamente quando, logo após o nascimento da caçula, o pai os largou no total desamparo, desaparecendo para sempre. A circunstância obrigou Ignácio a intensificar sua jornada de trabalho e abandonar a escola apenas concluído o 4º ano primário.

Saía de casa por volta das 7 da manhã, muitas vezes sem sequer uma fatia de pão ou um gole de café no estômago. Pegava o trem da Central do Brasil na estação Mocidade, Linha Santa Cruz, para ir até o centro da cidade oferecer seus serviços aos transeuntes, parava nas portas dos bares e outros estabelecimentos comerciais e muitas vezes trocava uma engraxada por um pão com manteiga e uma média.

Cada cliente lhe rendia 80 reis. A mãe exigia que voltasse para casa com ao menos 1500 reis para, somado a seus ganhos como diarista, perfazer pouco mais de meio salário-mínimo ao fim de trinta dias, cálculo feito por ela para completar o necessário a fim de cobrir as despesas do mês. Isso equivalia a mais de 20 pares de sapatos por dia, pois precisava ainda descontar o valor das passagens do trem e o gasto com alguma coisa para comer.

A jornada era extremamente árdua e o forçava a percorrer longas distâncias, pois, quando o movimento em determinado ponto ficava fraco, tinha de se deslocar para outro para conseguir preencher a cota diária. Às vezes essa longa “caçada” o fazia chegar de volta à casa tarde da noite. Mesmo assim, muitas vezes, sem conseguir bater a meta.

Nos caminhos por onde passava, cultivava muitas amizades e se distraia um pouco com qualquer novidade que chamasse atenção; uma vitrine, um artista de rua, ou até mesmo uma colisão entre dois carros, afinal essas eram as únicas oportunidades de divertimento possível. Cada uma das adversidades impostas pela condição miserável, era encarada como mais uma oportunidade de aprendizado na “escola” em que se formou e se criou como um “bom malandro” à feição do Rio de Janeiro da década romântica de 1940.

Apesar da forma ríspida com que a vida o tratava e da sabedoria adquirida com a gente da rua com a qual convivia, nem todas em consonância com as ditas regras morais, Inácio sempre foi um menino generoso, sensível, boa praça, amigo de todos, comunicativo, brincalhão, não se furtava a ajudar qualquer pessoa que necessitasse; e isso tudo o fazia feliz, de tal maneira que seus ardis, nunca resultavam em prejuízos, pelo menos significativos, a quem quer que fosse, a não ser, algumas vezes, a ele mesmo. Ao contrário, suas artimanhas eram apenas a maneira encontrada de sobreviver na grande cidade, quase ingênua comparada aos dias atuais, mas, mesmo assim, oferecia muitas armadilhas e perigos cotidianos, principalmente a uma criança dos seus 11/12 anos.

Aos 15 anos uma tragédia se abateu sobre a família. A mãe foi diagnosticada com tuberculose e veio a falecer em poucos meses. Diante da situação inesperada, se viu perdido, mas não podia se deixar abater, pois agora era sozinho e tinha sob sua responsabilidade as duas irmãs.

A mais velha, com apenas 11 anos, ficou encarregada de cuidar da casa, e ele, embora já tivesse há algum tempo obtido um emprego em um comércio próximo à moradia, com salário superior ao valor que ganhava como engraxate e para o qual podia ir a pé, economizando o dinheiro da passagem do trem, mas, mesmo assim, os ganhos eram insuficientes para prover o lar com um mínimo de conforto. Assim, o aprendizado e o conhecimento, obtido quando perambulava pelo centro da Capital Frederal, lhe foram de grande proveito.

Obteve, junto a um estabelecimento clandestino, uma carteira de identidade falsa, com a data de nascimento adulterada, tornando-o dois anos mais velho. Com esse documento, apresentou-se no quartel da Força Pública para sentar praça, sendo admitido. A tentativa bem-sucedida possibilitou relativa estabilidade à família, trazendo autoconfiança e orgulho para Inácio.

O serviço, no entanto, exigia pernoitar no quartel por várias vezes durante o mês, obrigando-o a deixar as irmãs sozinhas no barraco nessas ocasiões, trazendo, de início, grande preocupação. Porém, com o tempo foi percebendo a maturidade precoce de Isabel, a mais velha, e a forma como conseguia manter a ordem e a disciplina da casa.

Isabel administrava o dinheiro deixado mensalmente pelo irmão, tomando conta com desenvoltura de Ingrid, a caçula, então com 8 anos, mantendo-a alimentada, cuidava das roupas, zelava por sua frequência, a levava e buscava no grupo escolar nas proximidades do morro onde moravam e orientava nas lições de casa. Por outro lado, a irmã menor era uma menina bem-comportada, estudiosa e muito inteligente, facilitando o trabalho.

A constatação de que as meninas estavam relativamente bem o tranquilizava para poder se dedicar o mais possível ao trabalho. Era considerado, por seu comandante e demais superiores na caserna, um bom soldado. Isso, contudo, não o impedia de exercer sua índole galhofeira. Adorava contar piadas, pregar peças e, principalmente, inventar peripécias armando apostas com os colegas.

Com as habilidades aprendidas e a necessidade de enfrentar os riscos naturais das ruas, desde muito pequeno acostumou-se a criar desafios a si mesmo e casar uns trocados com os amigos de que seria capaz de encará-los com desenvoltura. Nunca perdia, embora, muitas vezes, as consequências advindas de suas travessuras não compensavam os trocados amealhados, mas ele se divertia mesmo assim, gabando-se pelo feito durante os próximos quinze dias.

Uma vez, quando ainda engraxava sapatos no centro da cidade, apostou com os amigos que entraria em uma loja que havia colocado uma banca de roupas em liquidação logo à frente da porta, jogaria todas no chão e sairia correndo sem ser pego pelos seguranças.

A aventura, até certo ponto, foi bem-sucedida, e ele ganhou a aposta. No entanto, por azar, um dos vigilantes voltava do almoço e ainda na rua percebeu o movimento e o agarrou na saída, levando-o novamente para dentro, passados alguns minutos, foi liberado. Nunca contou para ninguém o que aconteceu, mas o fato é que, a partir daquele dia, só passava em frente ao estabelecimento pela calçada oposta.

Outra vez, apostou com os moleques da vizinha da comunidade que seria capaz de subir as centenas de degraus da precária escada, instalada em uma caixa d’água existente nas proximidades, com uns bons 30 metros de altura, sem nenhuma proteção; anunciava sua proeza com antecedência e somente quando se certificava de que as adesões representavam um montante compensador, marcava a data do evento, atraindo um bom público para testemunhar. Ia lá e fazia o que se propunha. Dessa vez teve uma certa dificuldade para descer, mas não deixou ninguém perceber esse contratempo. E, como sempre, ganhou a parada e saiu pela vizinhança todo gabola.

Inácio manteve o mesmo espírito durante toda a vida, bem como suas virtudes admiráveis, e em sua época de serviço na polícia, apesar do rigor e da disciplina reinantes no ambiente, não foi diferente. Assim, certa vez, desafiou os colegas que conseguira retirar na lavanderia a farda do comandante, um capitão com fama de durão, se vestiria com ela e desfilaria pelo pátio do quartel. Assim o fez. E, na mesma noite, adentrou o rancho dos oficiais ostentando a indumentária do superior hierárquico. Não demorou para o impostor ser identificado e detido.

A peripécia lhe rendeu – além dos ganhos financeiros, pois, como sempre, ganhou a disputa – um “gancho” de 15 dias na prisão do quartel, com o corte do salário pelo mesmo período. Nada que o abalasse definitivamente. Até porque o arrecadado compensou o valor descontado de seu soldo mensal e ainda sobrou uns bons trocados, para, terminado o prazo da pena, convidar os mais chegados para comemorarem a “liberdade” com uma cervejada, com muita discrição, pois bebida alcoólica não é permitida nas corporações militares, e ninguém estava disposto a ir para a prisão, principalmente ele.

O que não esperava, entretanto, era uma consequência a mais decorrente de sua aventura: com o episódio passou a ser conhecido pelos colegas como “Capitão Rolo” em razão de sua extraordinária capacidade de se envolver em situações complicadas, mas, principalmente, se sair bem delas. Com o tempo, o apelido foi abreviado para apenas “Capitão”. Com seu proverbial bom-humor, não recusou o epiteto, ao contrário, adotou-o de bom grado, a ponto de se apresentar, quando a situação propiciava, como “Capitão Inácio”.

A designação lhe caiu tão bem que o acompanhou pelo resto da vida. As pessoas acreditavam ser ele, de fato, capitão reformado e muitos integrantes das forças militares até lhe prestavam continência.

A alcunha, adicionalmente, lhe foi de muita valia quando, superadas as dificuldades da infância e juventude, estabilizou-se na vida, tendo se casado, constituído família e adotado a profissão de despachante, a falsa patente lhe abria portas junto ao Detran e outros órgãos oficiais. Ele, é claro, nunca cogitou desfazer o mal-entendido.

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Nota do autor: O Capitão é um personagem real, a quem, com este conto, presto uma homenagem, por ter sido uma pessoa incrível e muito importante na minha vida. A história é parte realidade e parte ficção. No caso, ele de fato nasceu no Morro de Padre Miguel, perdeu a mãe aos 15 anos e cuidou das irmãs. Conseguiu aumentar a idade e ingressar na, então, Força Pública/RJ, atualmente Polícia Militar, onde apostou com os amigos que “tomaria emprestada” a farda do capitão, ganhando a aposta e sendo preso por isso. Futuramente se tornou despachante e manteve o apelido até seus últimos dias de vida.

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