Tio Lauro
Bebida não livra cara e leva maioral das caipirinhas
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Tio Lauro, alcoolista, há quase quatro décadas não bebia. No entanto, para deleite de parentes e amigos, era o maioral na arte de preparar a melhor caipirinha, aprovada por quase todos, menos tia Lúcia, que possuía verdadeira ojeriza a álcool.
Quando tinha lá seus 8 anos, tio Lauro tomou gosto pela espuma de cerveja oferecida por um tio, provavelmente o Afonso, que partiu para o além por conta de uma cirrose hepática antes de completar 35 anos. O então menino, alguns anos após, entrou na adolescência embalado por Cuba Libre, Piña Colada e o afamado Rabo de Galo. E sai da frente, pois o rapazola, segundo os boatos carregados de exageros (ou seriam a mais pura descrição da realidade?) não poupavam meu tio, que a tudo sorria e, diria eu, com até certo orgulho.
Sejam quais tivessem sido os exageros de tio Lauro, quase todos ficaram para trás. Menos um, que o sujeito fazia questão de exaltar: tia Lúcia. Sim, a mulher que o encontrou na sarjeta dois dias antes do casório. E poderia muito bem ter desmanchado o compromisso, mas não o fez. Pelo contrário, tratou de enaltecer as qualidades do noivo, que, pelo menos naqueles idos, pareciam ser praticamente nenhuma, além do fato de, segundo testemunho da minha tia, beijar melhor do que o próprio Rodolfo Valentino.
Se a arte do beijo salvou o casório, foi o tratamento que foi a tábua de salvação de tio Lauro em relação à dependência de álcool. Internou-se, por conta própria, em uma clínica de reabilitação logo após a lua de mel, de onde saiu, quase três meses após, consciente de que sua doença era incurável. E, a partir de então, nunca mais bebeu.
Durante os festejos, tio Lauro tomava conta das bebidas, enquanto se deliciava com os sambas de Alcione, Beth Carvalho e sua favorita, Elza Soares. No entanto, a música que abria o bar era a marchinha “Cachaça não é água”.
Não raro, enquanto o marido de tia Lúcia preparava as batidas para os convidados, um ou outro curioso lhe fazia certos questionamentos.
— Não acredito que você não vá tomar nenhum gole.
— Não posso. Sou alcoolista.
— E não sente vontade de beber estando tão próximo de tanta birita?
— Não. Só preciso ter cuidado.
— Com a tentação, né?
— Não.
— Com o quê, então?
— De cair uma gota nos lábios. Por isso, uso sempre máscara pra me proteger.
Por ironia do destino, foi justamente a bebida que nos tirou tio Lauro. Enquanto retornava de uma breve viagem, já chegando a Brasília, seu automóvel foi atingido por um caminhão, cujo motorista estava completamente embriagado.
O caixão precisou ser lacrado, pois meu tio ficou irreconhecível. Tia Lúcia, até o último suspiro, praticamente dois anos depois, não parou de lamentar a morte do marido. Ela tinha razão: bebida é mesmo uma desgraça.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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