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Instintos

Boitatá

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

“Mistério sempre há de pintar por aí”, ensinaram Gil e Caetano. Até mesmo no árido ambiente acadêmico.

O historiador Fernando Veloso convidou seu colega de universidade, o antropólogo Eduardo Martins, para jantar em sua casa. Depois foram para uma salinha aconchegante, junto à sala de jantar, e sentaram-se em poltronas próximas uma da outra. A empregada serviu-lhes um café de aroma delicioso e um conhaque, retirando-se em seguida. Os dois tomaram o café e começaram a saborear o conhaque. Minutos depois, Eduardo quebrou o silêncio.

– Bom jantar, bom café, bom conhaque… Mas chega de mistério, Fernando. Conte por que me chamou aqui.

– Uma amiga me enviou um relato perturbador, e que tem a ver com seu campo de pesquisa, mitos indígenas…

– E afro-brasileiros – interrompeu Eduardo.

– Sim, indígenas e afro-brasileiros – concordou Fernando, contrariado com a interrupção. – Mas peço que não me interrompa, a história não é muito longa.

Bebeu um gole de conhaque, tomou fôlego e prosseguiu.

– Interior do Paraná, década de 1960. Um homem, montado a cavalo, encontra uma mulher numa estradinha de terra e a chicoteia até tirar sangue. Por quê, o relato não explica. Talvez ele estivesse bêbado, ou a chamou para transar e ela recusou, ou ela quis fazer e era feia e ele se ofendeu…Talvez ele simplesmente gostasse de bater de rebenque em mulheres… O importante é que ela jurou vingança.

– Meses depois, durante a Semana Santa, o homem cavalgava à noite quando viu uma luz que vinha na sua direção, aumentando de tamanho à medida que se aproximava. Apavorado, fez o cavalo galopar de volta pra casa a toda velocidade; já diante do seu sítio, sentiu o animal arquear o lombo e quase cair; voltou-se e viu a mulher na garupa, envolta em fogo. Sorrindo malévola, ela rosnou: “Falei que ia me vingar!”.

– E… – tentou perguntar Eduardo. O narrador o ignorou.

– O homem saltou da sela, rolou no chão e correu para casa, trancando a porta segundos antes de ser dilacerado pelos dentes e unhas da aparição. Esta rodeava a casa de madeira, brilhando como fogo e dando gargalhadas. O homem lembrou-se de que o fogo podia neutralizar seres ligados a esse elemento; conseguiu recuperar uma pequena brasa que morria no fogão a lenha, alimentou-a cuidadosamente com gravetos e tiras arrancadas de suas roupas, pois não havia lenha dentro da casa, e produziu um fogo de boas proporções. Só então a coisa do lado de fora desapareceu. Ele ficou paralítico, nunca mais conseguiu andar, mas contou a todos do vilarejo que quase morrera, perseguido pelo boitatá.

Fernando tomou outro gole de conhaque.

– Fim do relato. E então, Eduardo?

– Boitatá? – explodiu o convidado. – Uma cobra de fogo das lendas indígenas torna-se uma mulher dos sertões paranaenses? Crendices para assustar matutos!

– Eduardo – falou mansamente Fernando –, há um antropólogo escondido em algum lugar dentro de você. Pergunte a ele o que ele pensa…

Desarmado pela delicada ironia, Eduardo sorriu e respondeu:

– Bem, “meu” antropólogo diria que é possível uma superstição indígena se transformar numa crença de populações interioranas católicas, a Semana Santa é um elemento importante nesse relato. Mas boitatá? A cobra de fogo dos nativos não passava de fogo-fátuo, luminosidade que aparece à noite em áreas pantanosas ou cemitérios, quando queimam os gases provenientes da decomposição de materiais orgânicos. – Mudando de rumo, perguntou:

– A pessoa que mandou esse relato é confiável?

– É uma pedagoga paranaense chamada Olga, de bom nível cultural. Ela me informou que ouviu o relato quando criancinha, contado pela própria vítima do boitatá. – E prosseguiu, quando Eduardo já se preparava para interrompê-lo:

– E Olga está em boa companhia. O primeiro relato sobre o boitatá, a “cobra de fogo” dos indígenas, foi escrito pelo padre José de Anchieta, o fundador de São Paulo, em 1560.

– Anchieta e Olga que me perdoem, mas não acredito em nada disso – cortou Eduardo. – Existe, porém, um elemento antropologicamente interessante no relato: a oposição entre o fogo “natural” – ou, no caso, “sobrenatural” – e o fogo “cultural”, produzido pelo homem.

Olhou para o relógio, franziu as sobrancelhas com ar preocupado e continuou:

– Por causa desse elemento estrutural, vou autorizar uma pesquisa de campo no interior do Paraná. É o que você queria, não? – E num tom malicioso. – Verifique com sua amiguinha o local exato onde teria ocorrido a investida do boitatá, para reduzir a área a ser investigada – E concluiu:

– Agora vou pra casa, já é tarde.

Fernando tocou uma campainha para chamar a empregada e pediu-lhe que trouxesse o casaco do professor Martins. Logo depois, a jovem entregou-lhe o casaco, tocou-o com a mão – e Eduardo caiu fulminado.

Fernando olhou-a aturdido, sem acreditar no que vira.

– Ele ia perturbar minhas irmãzinhas do interior – disse a moça, cujo corpo parecia reluzir. – Mas não se preocupe, o cadáver vai virar cinza rapidinho e você não corre risco de vida, pelo menos ainda não. – Balançou a cabeça. – Vocês acadêmicos são engraçados. Aquele imbecil morto escreveu sobre o orixá Xangô, que podia se transformar em chama, porém considerava crendice que entidades indígenas tivessem os mesmos poderes…E quem disse que somos indígenas, que Xangô era iorubá, que os deuses do Olimpo, senhores do relâmpago e do fogo, eram gregos? Por que seres de energia não poderiam se materializar em determinadas culturas, moldando-as e acelerando sua evolução?

– É o que vocês são? Seres de emergia? – indagou Fernando.

– O que você acha, depois de ver como acabei com aquele pedante? Ele escreveu artigos eruditos sobre as roças junto aos terreiros de candomblé, espaços mágicos, de trocas entre o mundo urbano dos homens e a mata, domínio da natureza e de seres sobrenaturais. Mas nunca percebeu que, num país tão vasto como o Brasil, há muitos mais seres desse tipo, que jamais foram listados pelos antropólogos. – Sorriu e continuou: – Pense no interior do Brasil como uma a vasta roça de candomblé. É lá que os mistérios pintam, é lá que a magia acontece.

Dirigiu-lhe um olhar sedutor, mas sem tocá-lo.

– Sabe, pensei em poupar sua vida e até em transar com você. Mas há impulsos mais antigos, necessidades mais primordiais… Entre elas está a de assumir minha antiga forma, aquela com que me ofereci aos olhos apavorados do padre Anchieta. Outra necessidade é a de realizar meus desejos… Moço, transar é uma delícia, mas enrodilhar-se na presa e devorá-la lentamente é muito mais!

Em seguida, a jovem assumiu a aparência de uma cobra de fogo. Em seu corpo sucediam-se ininterruptamente todos os matizes do vermelho e do dourado. Era um espetáculo deslumbrante, o que tornava ainda mais horrível o contraste com o gigantesco focinho brutal de serpente, de presas expostas, pronta para golpear.

Fernando começou a gritar.

– Isso, querido. Ponha pra fora seus medos – falou o ser monstruoso, com um leve sibilar de serpente. – Vocês humanos não fazem ideia de como apreciamos suas emoções primordiais, entre elas o terror. – Enrolou-se no professor que gritava sem parar e explicou. – Quando eu apertar seu corpo, seus ossos quebrarão. Vai ser muito doloroso, mas você não vai morrer de dor ou de medo. – E concluiu. – Vai morrer aos poucos, à medida que minhas presas, cravadas em seu pescoço, sugarem sua energia vital e introduzirem em seu organismo o fogo dos deuses!

Uns 20 minutos depois, Fernando estava reduzido a um punhado de cinzas, que o vento logo dispersaria.

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