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Asa Norte

Bolinho de chuva, café e conselhos

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Gente tola há aos montes, gente ressabiada muito menos, gente sábia é uma raridade, mas que, de tempos em tempos, deixa toda aquela outra gente boquiaberta. Dirce seria assim, e não pense você que fosse por conta de estudos, que era praticamente nenhum. Pura capacidade cognitiva.

Essa habilidade mental de entender o que está no ar, mesmo quando são utilizados subterfúgios para esconder a verdadeira intenção do interlocutor. Talvez por isso, a mulher não era vista em grupos de fofocas, reuniões infrutíferas ou igrejas. E não adiantava chamá-la, que ela dizia que a vida era muito curta para perder tempo com tolices.

A despeito de tal comportamento, não raro, alguém a procurava para pedir conselhos. Não que ela gostasse de parar de fazer o que lhe era tão caro para, digamos, dar atenção a outrem. Todavia, como não era bicho do mato, recebia a visita com bolinhos de chuva e um café passado na hora.

Rosângela era uma das criaturas mais assíduas no quarto e sala no final da Asa Norte, em Brasília. Por conta disso, mesmo que não fossem amigas de verdade, mantinham aquele espírito de camaradagem, ainda mais porque a empatia era recíproca.

Entre uma mordiscada no quitute e um gole no café, Rosângela confessou que estava apaixonada por um pastor de igreja. E, segundo suas próprias palavras, o sentimento era recíproco, apesar do sujeito ser casado.

— Casado?

— Dirce, mas ele disse que não vive bem com a esposa.

— Hum…

— E prometeu que iria se divorciar.

— Hum…

— Disse que só estava esperando o momento adequado pra falar pra mulher.

— Hum…

— Ele é um homem direito, é pela família e pelos bons costumes.

— Hum…

— É Deus, pátria e família.

— Hum…

— Corretíssimo!

— Hum…

— Pediu apenas um tempo pra resolver as coisas com a esposa.

— Hum…

— O que você me diz?

— Há quanto tempo vocês estão juntos?

— Dois anos. Quer dizer, dois anos e cinco meses.

— Hum…

— Então?

— Hum…

Dirce pegou um bolinho de chuva e o levou à boca. Mastigou-o enquanto observava o semblante da visita, que parecia angustiada. A anfitriã deu um gole no café, deu outro e limpou a garganta.

— Então, Dirce?

— Sai fora disso.

— O quê?

— Rosângela, isso aí é carniça que até urubu rejeita.

O choque de realidade daquela frase foi o suficiente para fazer com que Rosângela não apenas deixasse o pastor, como também mudasse de igreja. Quanto à Dirce, ela continua dando conselhos pertinentes sempre acompanhados de bolinho de chuva e aquele café passado na hora. E tudo por mera camaradagem.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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