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Arroubos sem nexo

Bolsonaro pisa no acelerador para espalhar o vírus

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

A pretexto de restabelecer o “direito de ir e vir e acabar com essa covardia de toque de recolher”, o presidente da República voltou a protagonizar aglomerações e a ameaçar governadores que defendem a vida com o Exército nas ruas. Em ambientes refrigerados e com suntuosos mobiliários, família blindada, com a fome saciada, alto salário, vantagens nababescas e dignas de meia dúzia de mortais, sob olhares de fanáticos (alguns deles esfomeados) e ao arrepio das leis, é fácil convocar para missões tresloucadas o Exército que, segundo ele, é do povo. Não fosse cômico, seria trágico representantes fardados de um dos mais importantes segmentos das Forças Armadas bater de casa em casa pedindo ou obrigando seus moradores a caminharem solene e placidamente para a morte.

Digo trágico porque o ocupante do “imunizado” Palácio do Planalto não está – e não quer ficar – na linha de frente, junto daqueles que, sem equipamentos, medicamentos e, às vezes, oxigênio, são obrigados a enfrentar a letalidade do vírus com cuspe, esparadrapo, merthiolate e, quando podem, mercúrio cromo. A comédia é porque a repetição da intimidação ocorre em meio à piora da pandemia e no momento que a maioria dos estados experimenta um macabro e inusitado colapso no sistema de saúde. Ainda que sejam decisões antipáticas, não fossem as medidas de restrições de circulação de pessoas adotadas por governadores, certamente o Brasil da ilegalidade estaria contabilizando hoje muito mais do que 14,3 milhões de infectados e 391 mil mortes.

Para quem não age, se fecha em copas e se acha acima do bem, é muito fácil se sentar em uma cadeira escorregadia, reunir dezenas de ensaboados colaboradores em volta de uma mesa com fundo falso e dar ordens que ele sabe não serão cumpridas sequer por metade dos 30% de apoiadores. Difícil é explicar para os 15% restantes (aqueles só registram o querem) como o governo de São Paulo conseguiu, em um mês, reduzir em quase 27% as internações por Covid-19 e, em pouco mais de 50 dias, estabilizar a menos de 80% a ocupação de UTIs. Lembremos que faz apenas algumas semanas, esse percentual aproximava-se assustadoramente de 100%. E não era apenas em São Paulo. E como informar a esse pessoal que, com o lockdown, a média de mortes caiu 60% em Rio Preto. Eles sabem disso, mas melhor não registrar.

Pior ainda é levá-los a ler que países que controlaram a Covid-19 já têm até 50 mil torcedores em estádios. Só acreditariam se o capitão estivesse uniformizado com a camiseta de um dos clubes responsáveis por essa proeza. Impossível seria aceitarem a afirmação de que os clubes são somente beneficiários de decisões acertadas, planejadas e sérias de governantes que se preocupam com seus governados. Conheço “seres humanos” incluídos nessa metade que, no momento oportuno, tomaram uma das doses da CoronaVac ou da AstraZeneca com um único objetivo: impedir a imunização de um semelhante que confia na ciência e teme o vírus. Afirmo isso porque são próximos e ouvi em alto e bom som que não tomariam a segunda dose. Perderam a oportunidade de evoluírem com homens e mulheres do bem.

Também conheci numerosos negacionistas e incrédulos que preferiram a medicação com cloroquina, ivermectina e hidroxicloroquina. Falo no passado, pois, infelizmente, fizeram a quina antes da Mega-Sena e viraram estatísticas do principal telejornal do país, veiculado justamente por aquela emissora vermelhenta e rabugenta que insiste em criticar o bundalelê defendido pelo presidente da República. Os mais esclarecidos (sigilosamente eles tentam defender o indefensável) já perceberam que todos na rua e sem máscara significa a probabilidade de uma nova e desconhecida variante. Mesmo preocupados em não desapontar o líder, esses temem a morte e engrossam as filas dos postos de saúde em busca do imunizante que pode representar um fôlego divino.

O problema são os que encasquetaram com mitologias. Para esses, pouco importa o termo variante. De forma jocosa ou por ignorância, alguns o associam a um velho e bom utilitário produzido no Brasil pela Volkswagen nos anos 70 e 80. Brincam ou verdadeiramente não conheceram a Variant, mas, no aconchego do travesseiro, sem os diabinhos ideológicos, temem a modulação do vírus porque sabem que ela é mais rápida do que o veículo e infinitamente mais silenciosa do que as palavras. Não esperem do mito nada além de arroubos sem nexo. Quanto ao vírus, talvez os que o negam consigam um túmulo convexo e com um anexo bem sugestivo: aqui jaz um cidadão perplexo com o desconexo e complexo dever de atender quem me tirou o reflexo e me obrigou a esquecer a ciência.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978 

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