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Os bêbados e o equilibrista

Bolsonaro vê Lula no retrovisor e Centrão no calcanhar

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

O Brasil é uma nação de muitas facetas políticas. Por isso, o retrato de hoje não deve ser o de amanhã, muito menos o do fim de semana, tampouco o de 2020. Por tudo que já mostrou e certamente ainda mostrará, Bolsonaro não deve ir muito longe como o presidente que afirmou que seria antes de ser diplomado, empossado e “enfaixado” pelo novo companheiro Michel Temer. Com Luiz Inácio cada vez mais nítido no retrovisor, aspirando o cheiro forte da morte resultante da pandemia que insiste em negar e sentindo o dedão e o segundo dedo do pé direito do Centrão cravados no calcanhar, não demora e o presidente será definitivamente engolido pela “escola” política que está anos-luz à frente dos seguidores matutos e empedernidos da esquerda e da direita.

Unidos, organizados, centrados (perdão pelo trocadilho) e muito mais inteligentes do que os extremos, a turma do Centrão sabe o que quer, o que faz e pensa mais adiante do que alcançam nossas vãs filosofia e imaginação. Prova disso é que, depois do longo período de arbítrio, quando mandava sem ter armas, nunca teve interesse em ser poder, embora jamais tenha ficado longe dele. O grupo cerrou fileiras com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio. Também ajudou a derrubar Dilma Rousseff, bancou Michel Temer e agora começa a tentar sustentar Bolsonaro. Considerando que boa parte da direita é mais oportunista do que ideológica e que a esquerda lembra cachorro que caiu do caminhão de mudanças e não sabe para onde vai, o Centrão vai nadar de braçada na tarefa libertária de rasgar a cartilha ideológica e reprodutora do ensaísta Olavo de Carvalho.

E farão isso sem medo algum de rompimento irreversível entre corpo e alma. Aliás, a vida é o que menos importa no atual cenário de tomada de governo. O povo e as mortes são apenas detalhes. Enquanto o somatório da preocupação do Centrão não alcança os cargos desejados, pelo menos 58 milhões de brasileiros (27,7% da população) estão em grave situação de insegurança alimentar (eufemismo para a fome). O quantitativo de óbitos por conta do vírus está cada vez mais próximo dos 400 mil – o segundo maior do planeta terra -, mas há uma semana suas excelências denominadas parlamentares permanecem no recreio, não conseguem elencar as demandas e esquecem de concluir as discussões sobre o modus operandi da CPI da Covid-19.

Isso dá margem a avaliações populares muito sensatas, como as que asseguram que a CPI é para inglês ver e que a política é uma fraude de A a Z. No mínimo, um abecedário de incoerências. Contextualizando, no mesmo dia em que enviou ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, uma carta prometendo dar fim ao desmatamento ilegal até 2030, Bolsonaro patrocinou – certamente não se opôs – a troca de comando na Polícia Federal do Amazonas. O delegado Alexandre Saraiva perdeu o cargo de chefia depois de uma operação da instituição ter feito a maior apreensão de madeira da história do país. Para justificar a demissão, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, queridinho do bolsonarismo, angelicalmente defendeu os madeireiros ilegais, afirmando que houve falhas na investigação.

Ficou o dito pelo não dito, embora líderes de oito partidos de oposição tenham representado contra o novo ministro da Justiça, Anderson Torres, e o atual diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, chefes de Saraiva. Voltando ao Centrão, principal esteio do capitão e razão do texto, nada mais interesseiro do que o grupo. É um balcão de negócios. O pote do desapontamento transbordou na semana em que, liderado pelo deputado Arthur Lira (Progressista-AL), e com velocidade incomum, o bloco reuniu uma maioria e aprovou a admissibilidade de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que previa novas regras para imunidade parlamentar e para prisão de deputados e senadores.

Se aprovada, a PEC teria simbolicamente o poder de garantir aos parlamentares direito à impunidade absoluta, independentemente das ameaças, da sacanagem ou do crime cometido. Resumindo, para os políticos tudo seria possível, inclusive negar juramentos sob a Constituição. Tudo isso uma semana depois de o mesmo Arthur Lira negociar com o Supremo Tribunal e adoçar com leite condensado a boca do povo honesto com a manutenção da prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PP-RJ), preso em flagrante após um vídeo em que ameaça ministros do STF e faz apologia ao AI-5. Em pouco mais de uma semana, a Câmara virou um botequim de péssima frequência, daqueles em que bêbados aparentemente perdidos no tempo discutem atabalhoadamente sobre assuntos diversos, mas nunca esquecem o momento da próxima dose.

Ao contrário dos bêbados, os deputados não perderam tempo. Se prometeram alguma coisa aos ministros do STF, fizeram outra. Nada demais, considerando que historicamente não cumprem promessas feitas a eleitores. É a retórica do Brasil que só anda para trás. Que bom se deputados e senadores pensassem realmente no eleitorado que morre sem leitos em hospitais e sem vacinas. Vale lembrar que, em um universo de 13.746.681 casos confirmados, o país já perdeu 365.444 mil eleitores para a Covid-19. Falando em bêbados, me lembrei de uma história real vivida por um grande cantor norte-americano, já falecido. Preso por embriaguez, ele teria comparado os políticos responsáveis pela lei que gerou a detenção a prostitutas. Um policial o prendeu e, na custódia, o juiz determinou que ele se retratasse. Ainda trôpego, o fantástico intérprete pediu desculpas às prostitutas. É só uma ideia.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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