Loucura em hospício
Briga de doentes mentais deixa um morto em Maceió
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Na abafada quinta-feira, 19, longe dos holofotes e das boas intenções das campanhas de saúde mental, dois internos do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió, travaram o que os funcionários chamaram de “mais uma briga de doidos”. A frase, dita com a frieza de quem já viu demais e sentiu de menos, ecoa ainda pelos corredores mofados da ala psiquiátrica como um epitáfio precoce.
Um dos doentes, Francisco — conhecido entre os internos como “Chico dos Relâmpagos” por gritar com as nuvens e conversar com postes — não resistiu aos golpes. Morreu ali mesmo, no chão frio do pavilhão 4, entre colchões rasgados, grades improvisadas e um silêncio que, ironicamente, ensurdece.
A versão oficial fala em “desentendimento entre pacientes com histórico de agressividade”. A nota da Secretaria de Saúde veio enxuta, burocrática, com menos emoção que um bilhete de farmácia: “o caso está sendo apurado”. Como se Chico fosse apenas mais um número no prontuário. Como se morrer por uma “briga de doidos” fosse coisa que se apura com formulário e uma sindicância interna que morre antes da próxima reunião.
Mas quem anda pelos corredores daquele hospício sabe que nada ali é novo. A superlotação virou rotina. Os enfermeiros, sobrecarregados, funcionam como carcereiros improvisados. Os médicos, poucos e rotativos, prescrevem mais calmantes que escuta. E os internos? Esses caminham em círculos, entre surtos, sonecas e cigarros contados, esperando a hora em que o próprio corpo decida parar de resistir.
Chico era esquizofrênico, sim. Tinha surtos, falava sozinho, tinha medo do “homem da porta vermelha”. Mas também era um artista. Desenhava rostos nos guardanapos do refeitório e tocava ritmos imaginários na borda da cama. Em outro tempo, em outro país talvez, seria caso de tratamento, cuidado, acolhimento. Aqui virou manchete tímida, quase escondida no noticiário local: “Paciente morre após briga no hospital psiquiátrico”.
Morreu, mas não sozinho. Morreu com ele a esperança de que algum plano nacional de saúde mental funcione. Morreu a promessa da reforma psiquiátrica. Morreu o discurso bonito da humanização do tratamento. Tudo isso esvaiu-se com o sangue que secou no canto da parede onde ninguém passou pano.
O outro envolvido na briga, cujo nome não será citado aqui por respeito ao anonimato do delírio, permanece internado. Sabe-se lá até quando. Ele não entende o que fez. Chora, às vezes. Ri, outras tantas. Às vezes chama por Chico. “Cadê o homem que fazia trovão com as mãos?”, perguntou, segundo um técnico de enfermagem.
O Estado, esse ente invisível e insano em sua própria lógica, continua. Assinando papéis, lançando campanhas publicitárias sobre “janeiros brancos” e prometendo mutirões de acolhimento. Enquanto isso, no hospício de Maceió, a loucura continua sendo tratada com tranca, tapa e descaso.
E Chico? Chico agora é estatística. Mas poderia ter sido poesia.