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A Luz Azul – Parte I

Busca por relíquia vira obsessão de quem quer o Santo Graal

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi de Oliveira - Foto Reprodução/Jeremy Audouard

Por muitos anos andei pelos antiquários da cidade procurando. Aos sábados acordava cedo e ia a Copacabana, ao centro, a São Cristóvão e mesmo aos subúrbios em busca de algo que não sabia exatamente o que era. Nessa busca incessante por um item desconhecido, definitivo, único, ia comprando e colecionando outras coisas. Relógios, estatuetas, espelhos, móveis, baralhos, máquinas, discos, instrumentos musicais, joias, livros, quadros, álbuns de fotografia com rostos desconhecidos e já longínquos. Minha sala, aos poucos, se transformara num museu, depois expandido para os outros cômodos do velho apartamento em Botafogo de onde, em alguns dias, via pela grande janela da sala o pôr-do-sol e a lua aparecendo ao mesmo tempo, por detrás do grande mar e da linha caprichosamente desenhada pelas montanhas.

Havia muitos anos que eu estava só. Viúvo, minha única filha morava fora do país com seu marido e um filho, neto que eu ainda não havia conseguido conhecer. Até a passagem aérea ela havia insistido em me mandar, mas eu não renovara o passaporte. Sou relapso nessas burocracias da vida… O passaporte estava vencido, a habilitação estava vencida, as vacinas, os exames médicos e mesmo alguns boletos que se acumulavam numa pequena travessa de porcelana sobre o aparador da saleta contígua ao hall de entrada. E não é falta de dinheiro. É só preguiça mesmo. Uma preguiça incontrolável de desempenhar esse papel boboca do cotidiano. Prefiro me concentrar nas coisas grandes: aguardar o sol se pôr na sexta-feira sabendo que, no dia seguinte, acordarei bem cedo, vestirei minha calça branca de linho, uma camisa bem leve, um chapéu Panamá na cabeça e sairei pela cidade em busca do que preciso, pelos antiquários, pelas ruelas, pelas feiras, a bordo do meu velho automóvel, torcendo para que a blitz não me pare, porque o licenciamento também está atrasado há tempos.

Vou em busca do quê? Não sei, mas vou. Mas saio. Mas compro. Mas catalogo. Mas guardo.

Outro dia acordei mais tarde que o habitual. Olhei para fora e o dia estava impressionantemente belo. Nenhuma nuvem no céu. Cheguei mais perto da janela da sala e senti, já àquela hora, o bafo quente do Rio de Janeiro. Os raios de sol davam um colorido todo especial à paisagem, mas fazia um calor cruel. Mesmo assim não deixaria de sair para o meu garimpo. Podia ser naquele dia, podia ser em outro, eu havia de achar o que procurava, embora não soubesse definir a preciosidade prestes a ser encontrada em qualquer lojinha, num canto empoeirado e esquecido.

O calor e a hora circunscreveram minha busca às proximidades. Iria à Praça XV, onde aos sábados há o tradicional bricabraque a céu aberto tão apreciado pelos cariocas.

Andei pelas barracas, cumprimentei alguns comerciantes já conhecidos, interessei-me por muitas coisas e levei para casa uma pequena moeda de ouro com a efígie de Pedro II, um abajur com uma bailarina estranha e bela e um antigo quadro a óleo, cujo vendedor me garantiu ser do século XVIII, representando algum arcebispo antigo e esquecido que vivera na cidade de Diamantina. Arrependi-me por, neste dia, haver deixado para trás uma caneca que parecia antiquíssima, com uma cena bucólica gravada em delicados traços ocres. No fundo, a palavra “porcellana”, escrita à moda antiga, denunciava a idade do objeto. O remorso de colecionador foi amenizado por lembrar que, diversas vezes, vi os itens se repetindo em intermináveis feiras ou, então, mesmo que vendidos, não raramente eles retornavam, às vezes pelas mãos de outros vendedores que os ofereciam como novidades. Fora assim com um velho projetor de filmes Pathé manual, todo restauradinho, que deixei passar meses atrás e, poucas feiras depois, estava sendo vendido em outra barraca, 1/3 mais caro. Comprei-o, lógico, depois de breve pechincha trazer o item ao preço original. O projetor nunca foi usado por mim, mas decora lindamente um nicho, antes vazio, próximo ao meu lavabo.

Os dias passavam iguais. O idílio era aos sábados. Os domingos eram solitários e preguiçosos, permeados de almoços num bar próximo e, até o cair da noite, a insossa programação da televisão. Durante a semana ainda precisava desempenhar o meu papel na vida comum. Ia ao escritório, no centro, perto do Passeio Público, para comandar uma equipe de advogados. Exercia a profissão havia 35 anos, estava numa posição de destaque, era reconhecido e tinha bons clientes, mas o que eu mais queria era sair dali, ser anônimo, esquecido. Concentrar-me por inteiro na busca. A busca era a razão do meu sacrifício diário.

Numa quarta-feira qualquer, voltava de uma sustentação oral perante uma câmara do tribunal quando, farto do escritório e do seu ambiente, disse que iria embora mais cedo. Apenas para a informação dos colegas, porque o patrão era eu mesmo. E saí. Mas, em vez de me dirigir para casa, fui para a parte velha do centro. Estacionei meu carro por ali e comecei a andar a pé pelas diversas lojas de antiguidades da região. Numa delas, próxima da Rua do Lavradio, num sobrado, eu encontrei, sem querer, a peça única que faltava na coleção. A consagração de toda uma vida. O Santo Graal dos meus objetos de estimação. Era de metal, com uma cor que só o tempo poderia ter dado. A origem era remota e incerta, mas estava ali, na minha frente, ao alcance das minhas mãos. Quase não a percebi sobre uma mesinha de canto, entre uma pilha de revistas antigas e ao lado de quadros e outros objetos amontoados. Mas ao encontrá-la senti algo impossível de descrever e que jamais vivenciei de novo. A recompensa de anos. Sem dúvida, o último item que compraria. Tive esta certeza naquele instante, embora há alguns momentos eu não soubesse sequer de sua existência.

Chamei o lojista e perguntei: quanto custa isto? Ele falou despretensiosamente: doze mil reais. Um valor e tanto, pensei. Mas valia cada centavo. Doze mil fariam falta? Talvez, mas em caso de necessidade poderia vender algumas peças do acervo, cobrir o rombo.

Acomodei minha nova aquisição no banco de trás do carro, com toda a segurança. Andei devagar pelas ruas em direção ao Aterro e fui olhando a paisagem, o céu azul e as outras cores enquanto me sentia estranhamente feliz, com a sensação de haver cumprido uma missão. Se houvesse Deus, e se Ele me tivesse posto sobre a Terra, teria sido para chegar até aquele momento único. Não obstante, tive também um pouco de medo e insegurança. Passou pela minha cabeça se a sensação não se esgotaria pelo fato da compra em si. Comprar não seria melhor do que possuir para sempre? Continuaria a me sentir único, especial, privilegiado pelo fato de ter a coisa, ou precisaria continuar a busca e ir atrás de outros objetos para recomeçar o ciclo?

A proximidade com o meu prédio esbateu qualquer raciocínio mais profundo da mente. Importava agora subir ao apartamento e achar um lugar de destaque para instalar devidamente minha nova aquisição, onde ela pudesse ser exibida e, ao mesmo tempo, pudesse exercer a função para a qual fora criada. Eis a questão: colocaria na sala, ou no quarto, mais próxima de mim, para que eu pudesse ficar olhando para ela na hora que acordasse, e que fosse a última imagem a guardar antes de dormir?

Optei pela sala, ao centro de um grande móvel de jacarandá marchetado por delicados fios de ouro, encostado à parede ornada por um quadro que retrata minha bem amada esposa há tanto tempo morta, que mandara fazer alguns anos após o nosso casamento, por um artista que conhecíamos e que pintava retratos. Na época ele até insistiu em fazer o meu também, mas desejei eternizar apenas a ela em sua juventude e beleza. Juventude que durou para sempre, porque ela morreu cedo, antes dos 30 anos, com uma doença rara até hoje mal esclarecida, deixando-me a filha ainda na primeira infância, a quem consegui criar e educar para se tornar uma mulher adulta bem resolvida, dinâmica e independente.

Finalmente entronizei-a em seu lugar, e mal podia esperar a noite para colocá-la em funcionamento e entender exatamente o seu simples mas criativo mecanismo. Fiquei ali, sentado numa poltrona, quase hipnotizado em sua presença majestosa. Aguardando. Aguardando.

A Parte II será publicada na terça, 14

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