Puxadinho do Buriti
Câmara sem espelhos reflete cara de policial
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Três décadas depois de instalada com pompa de autonomia e cheiro de Constituição nova, a Câmara Legislativa do Distrito Federal segue à procura de um espelho que não a desmoralize. Criada para representar o povo, fiscalizar o Executivo e erguer as colunas da democracia brasiliense, a Casa, hoje presidida pelo emedebista Wellington Luiz, terminou se especializando em outra arquitetura. É a de puxadinhos — simbólicos e, às vezes, concretos — na sombra generosa do Palácio do Buriti.
Os números oficiais são tão respeitáveis quanto desinteressantes. Até outubro de 2025, a Câmara aprovou 134 proposições: 73 Projetos de Lei, 47 Projetos de Decreto Legislativo e uma infinidade de intenções de utilidade duvidosa. Há leis meritórias, como as que tratam de crédito justo e uniformes escolares, mas entre uma homenagem e outra, o Legislativo parece se ocupar mais em confeccionar medalhas do que em discutir a cidade real. É a capital que amanhece em muitas das Regiões Administrativas, enfrenta o trânsito no Eixão e tenta não perder o ônibus na W3.
Enquanto isso, o descrédito cresce como mato em terreno baldio. Pesquisas internas de partidos apontam para uma renovação superior a 70% nas próximas eleições. Na tradução literal dos números, significa que de cada dez deputados distritais, sete estão a caminho do anonimato. Quanto aos demais, a depender do humor do eleitor, talvez lhes façam companhia. Tudo porque o eleitorado, cansado de discursos e enredos reciclados, parece disposto a varrer o plenário com a mesma disposição com que Brasília enfrenta uma chuva de outubro.
A ironia é que, no papel, a CLDF nasceu como símbolo da maturidade democrática. Antes dela, quem legislava sobre o Distrito Federal era o Congresso Nacional — uma espécie de tutor que decidia até o tamanho da sombra dos candangos. Quando veio a autonomia, em 1991, imaginava-se que, enfim, a capital teria sua própria voz. Mas o tempo mostrou que a voz se confundiu com o eco do Buriti. E o que deveria ser contraponto virou coro.
Em meio a muitos escândalos ao longo da sua curta existência, o parlamento local passou a carregar um pecado original que nem as transmissões ao vivo conseguiram absolver. A tecnologia entrou, a transparência foi prometida, os portais foram abertos — mas a distância entre o plenário e o povo continua do tamanho da Esplanada. Brasília assiste às sessões como quem vê um seriado velho, pois já sabe o enredo, já decorou os personagens e desconfia que o final não muda.
Há quem defenda que o problema é estrutural; afinal, os 24 deputados distritais acumulam o fardo de serem, ao mesmo tempo, vereadores e deputados estaduais. Mas o drama é menos constitucional e mais moral. Não se trata de quantidade de funções, mas de falta de função pública. A Casa, que deveria ser guardiã da autonomia, tornou-se uma espécie de central de apoio político do Executivo, onde as pautas governistas passam com a docilidade de um gato no colo.
Extinguir a Câmara seria um retrocesso, dizem os puristas. E têm razão. Mas mantê-la como está é condená-la à irrelevância ornamental. Brasília precisa de um parlamento que represente suas dores e esperanças, não de uma extensão do gabinete do governador. É preciso reinventar a função de legislar, que anda soterrada sob o peso das emendas, dos cargos e dos silêncios convenientes.
No fundo, a CLDF é o retrato da própria cidade que a abriga, considerando que foi planejada para o futuro, mas habitada por fantasmas do passado. É moderna na fachada, mas provinciana nas manobras. E, assim, vai sobrevivendo comissionada pela inércia, decorada pela retórica e fiscalizada apenas pela paciência do eleitor.
Brasília merece mais que um puxadinho. Precisa de um parlamento que tenha coragem, ao menos, de bater de frente com o Buriti sem pedir licença.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras, de passagem por Brasília
