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Dupla sem noção

Camila Morgado e a minha manteiga sem sal

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - de Arquivo

Eram os anos 1990, eu morava em uma das vagas que meu primo Henrique alugava na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, justamente o bairro onde nasci na mais linda cidade deste nosso planeta, que não é plano, apesar de alguns incautos habitantes ainda insistirem em tamanho disparate. E, olhando agora para aqueles tempos, parece-me que vivíamos num caos, mas éramos jovens e praticamente não parávamos no nosso lar, doce lar de então.

Apesar de sermos todos primaveris, eu destoava dos meus companheiros de moradia. Não que eu fosse mais bonito ou mais feio que os demais. Também não era mais gordo ou magro, nem mais alto ou mais baixo. O lance é que todos eles buscavam o estrelato, eram artistas atrás de um espaço na concorrida vida dos palcos.

Não me lembro de todos que passaram pelo apartamento do meu primo. No entanto, acabei me tornando amigo da Catia Carvalhal, que tentava se tornar dubladora. Ela era amiga de outra moradora, uma jovem atriz ainda desconhecida, bem magrinha, loira e de olhos enormes de um azul da cor do céu em um dia de praia. Seu nome? Camila Morgado.

Apesar de não receber nenhuma fortuna, eu era o único que ganhava o suficiente para ter uma vida razoavelmente confortável. Desse modo, minha condição financeira, entre todos que moravam no apartamento em Botafogo, era a melhor. No entanto, como bem me disse uma outra atriz em começo de carreira, a minha vida devia ser muito chata. Não sei se isso era totalmente verdade, mas entendi o que ela quis dizer, pois o meu destino me reservava algo comum entre a população em geral.

Nessa época, eu me ocupava com o curso de medicina veterinária na Rural do Rio (UFRRJ), que fica em Seropédica, bucólico município do estado do Rio de Janeiro. De lá, pegava um ônibus e rumava para o Andaraí, bairro suburbano da Cidade Maravilhosa, onde trabalhava no Banco do Brasil na parte da compensação, que começava à noite e terminava apenas de madrugada. Quando dava, ia para casa e dormia por uma ou duas horas, tomava um banho e voltava para as aulas na Rural.

Para quem não conhece os trajetos que fazia, imagine um grande triângulo, onde Botafogo, Seropédica e Andaraí ficam em cada uma das pontas. Os lados teriam distâncias aproximadas de 85 km, 75 km e 15 km. A rotina era pesada e, por isso, costumava aproveitar os trajetos e tirava aquela soneca. É verdade que, por conta disso, às vezes, também perdia o ponto de descida e precisava caminhar de volta por alguns quilômetros. Mas nada que piorasse tanto o que já estava complicado demais.

Nesse tempo, o dia que mais me dava prazer era a sexta-feira, pois sabia que, no dia seguinte, não precisaria acordar cedo e poderia dormir por mais algumas horas, mesmo que necessitasse estudar para uma ou outra prova. Dessa forma, ao sair do banco, rumava para o aconchego da minha cama, acompanhado da certeza de que meu corpo repousaria por pelo menos oito horas.

Pois bem, foi justamente num sábado que aconteceu algo que até hoje me faz dar boas gargalhadas. É que eu gosto de manteiga sem sal e dura. Entretanto, por algumas vezes, percebi que alguém a retirava da geladeira e a salpicava de sal. Longe disso me tirar do sério. Na verdade, eu até achava graça, pois me levava a um devaneio, que, naquela época, era extremamente necessário para mim.

O engraçado é que, ao escrever sobre essa história, chego a sentir o sabor daquela manteiga mole e salgada no biscoito cream cracker. Isso me ajuda a ter boas lembranças de um tempo de muita correria. Talvez eu esteja romantizando um período conturbado da minha existência. Seja como for, lembrar disso me faz sentir muito bem.

Mas voltemos ao conforto da minha cama naquele sábado dos anos 1990. Dormia o sono dos moribundos, quando, então, fui despertado por duas vozes femininas muito agradáveis. Logo as reconheci: Catia e Camila. Elas gargalhavam, mas não dei muita atenção, pois meu travesseiro me parecia muito mais interessante naquele momento. Todavia, o seguinte interlúdio me fez voltar as orelhas para a pequena cozinha.

– Catia, quem é o sem-noção que só compra manteiga sem sal e ainda coloca na geladeira?

– Sei lá! Mas é um sem-noção mesmo!

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