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Fantasmices

Camilo gostava de histórias de fantasmas

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Camilo gostava de histórias de fantasmas. O que fazia sentido: ele era um deles.

Seu relato predileto, lera fazia tempo, não lembrava o livro nem o autor, mencionava crianças que se tornavam amigas de um abantesma (detestava esse sinônimo de seu estado fantasmagórico, mas bola pra frente) e retocavam sempre, com tinta, uma mancha de sangue, cada vez mais apagada, no lugar onde a aparição se manifestava. Era um texto lindo e divertido, mas, infelizmente, falso como uma moeda de três reais. “Ah, se isso fosse verdade, se eu pudesse ter crianças como amigas…”, pensava sempre, com tristeza.

Se histórias lidas e ouvidas o divertiam, desenhos animados e outros filmes o deixavam exasperado. Gasparzinho, o fantasminha… “Por que tanto diminutivo?” Eram bem poucos os viventes que passavam à condição de fantasmas quando crianças. E ficar esvoaçando por ai, envolto em um lençol, fazendo Buuu para assustar os vivos…Francamente! Ser fantasma é triste, dilacerante, mas não é ridículo.

Gostava, por outro lado, da representação de sua galera em Os fantasmas se divertem e na série de Harry Potter. O primeiro, em especial, como o nome indicava, era bem divertido, até para os penadinhos. Nem este, nem os do bruxo inglês, eram como na realidade (impossível reproduzir com precisão a abantesmice), mas se aproximavam. Bem melhor que lençóis esvoaçantes, pelo menos.

Primeiro, um ponto essencial: a esmagadora maioria dos fantasmas não faz a menor ideia da situação em que se encontra. Ele próprio levara um bom tempo para perceber que não estava vivo. E não emitiam Buus! ou outras onomatopeias. Eram que nem corujas, não falavam, só prestavam atenção. Era o caso dele, talvez por isso tivesse percebido sua situação; outros, nem atenção prestavam, iam pela estrada da morte de sobressalto em sobressalto, como se fantasmassem pela primeira vez.

Segundo, cada fantasma tinha sua própria sina lancinante. O que tornava praticamente impossível os contatos e a troca de experiências entre as almas penadas.

Com um suspiro de resignação (com grandes pitadas de tédio), Camilo percebeu que estava quase na hora. Materializou-se no local fixado pelos séculos dos séculos, quase no momento em que a coisa acontecera. Viu-se, pela enésima vez, deixando os braços de sua amante; pressentiu (toda noite era a mesma coisa, mas pressentiu assim mesmo) a presença do marido traído; experimentou de novo a frieza da entrada do punhal, que se transformou em calor enquanto a arma branca lhe rasgava os tecidos. Depois, mais nada.

Materializou-se em um lugar qualquer, sem ferimento, sem dor. “O pior, na fantasmice, é a repetição interminável”, pensou. No caso dele, a coisa vinha ocorrendo há menos de 10 anos; outros, porém, estavam fazia muitos séculos nesse ramerrão. E nem ele, nem os veteranos, sabiam exatamente por que se abantesmaram. Não era uma punição pelo que fizeram – ou todo pecador viraria fantasma. Uma seleção aleatória? Esse vai pro purgatório, aquele direto pro inferno, o terceiro vai virar alma penada? Não sabia, ninguém tinha a resposta.

Lembrou de um verso de Cidadezinha qualquer, de Drummond de Andrade: Eta vida besta, meu Deus. No caso dele, era pior: Eta eternidade besta.

Com um novo suspiro de resignação (generosamente polvilhado de tédio), foi fantasmar por aí, à espera de que chegasse a hora mais uma punhalada.

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