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Chatice incubada

Carnaval politicamente incorreto morre e leva junto Maria Sapatão

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo/Prefeitura do Recife - Alexandre Bezin

Às vésperas de mais um Carnaval, os Calabresos, Ludimilos, Sabugos, Madonnos, Marílios Mendonços, Valescos Popozudos e demais nomes inventados pelo humor das periferias começam a tirar do armário a melhor fantasia de que dispõem: a alegria de ser o que a sociedade mal-amada, conservadora e mandona os impede de ser o ano inteiro. Durante três, quatro, dez ou 30 dias (a variação depende da cidade), a única coisa que a moçada foliã quer é soltar a franga até o sol raiar.

Há aqueles (as) que não conseguem amarrar o pinto e, por isso, soltam a perereca. Outros se imaginam um gato e buscam circular ronronando. Tentam, mas acabam decepcionando. Pouco importa a ordem dos produtos ou o resultado dos fatores. Importante é reviver o Entrudo, um tipo de brincadeira carnavalesca dos tempos do Império.

Foi a principal manifestação do Carnaval do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Maldita, bendita, profana, mundana ou abestelhadamente brasileiro, o Carnaval é mais uma das heranças dos colonizadores da terra d’além mar. Tudo a ver com os portugas bigodudos e rechonchudos. Vem daí uma das figuras lendárias e mais interessantes da festa de nossas pudicas tataravós.

Antes personagem “infaltável”, o Rei Momo perdeu a graça, mas, lembrando o comilão Dom João VI, até hoje é ele o representante da alegria, do humor e da irreverência da folia. Muita coisa mudou de lá para cá. Entretanto, se mantém vivo o sonhado desejo do homem ou da mulher de se travestir do que sempre quiseram ser sem a preocupação dos maldosos comentários conservadores de encalhados, enrustidos e abaitolados “patriotas”.

Por exemplo, embora macho alfa, me incluo na lista dos homens que já se imaginaram uma libélula desvairada. A recíproca feminina também é verdadeira. Jamais tive vergonha de assumir meu lado carnavalescamente mulher. Com a força do meu caboclo de frente e com a graça dos orixás do lado (nas costas, nada), volto ao normal antes mesmo do início da Quaresma.

Vale registrar que, dentro ou fora do período de Momo, é uma grande besteira dizer que o trans ou a trans não podem deixar de ser o que não querem. Gostoso é assistir na Avenida o prazer do servente de pedreiro, do auxiliar de serviços gerais ou da cozinheira ostentar suas melhores formas nos carros alegóricos das escolas de samba. Depois de ralar o ano inteiro, eles são reis, rainhas, príncipes, princesas e imperadores por um dia.

Do lado mais Nero e Júlio César, quem nunca pensou em desfilar suas frustrações como Samanta, Cyntia, Morgana, Cleópatra, Maria Isabel, Branca de Neve, Tonhão, Zezão ou Marcão? Não é apenas uma questão de oportunidade. É o desejo incubado de ser. E daí?

Uma pena que a violência que grassa no mundo tenha alcançado a folia. Sorte que os vikings são facilmente identificados e escanteados. Queiram o não, Carnaval é a festa mais libertária do planeta. É nela que a alegria e a vontade de ser feliz entram em cena, substituindo a angústia, a aflição e o desprazer de termos de enfrentar três centenas de dias à mercê de políticos fantasiados de prostitutos e de patrões vestidos de carrascos.

Por determinação médica, não posso mais virar a mão de um lado para o outro. Também estou proibido de usar aqueles apetrechos rendados e transparentes sob o vestido tubinho acima do joelho. Brincos na orelha e lantejoulas no baixo ventre, nem pensar. Estou cuspindo marimbondos africanos vivos. Todavia, permaneço feliz por estar vivo e capaz.

Os tempos mudaram. Lembro do coquetel de Melhoral, Cibalena, Emulsão Scott e Biotônico Fontoura que tias Brasilina, Helena e Ordália me obrigavam a tomar para repor energias. Ou tomava ou estava proibido de me incorporar ao Bloco das Donzelas Militantes, agremiação furtiva e patafísica criada pelos amigos Belini, Jorge Negão (+), Nélson, Nei, Henrique e Antônio, alguns dos maiores foliões que já conheci. Entrávamos em êxtase (sem maricagem, é claro) quando pegávamos o trem da Central do Brasil para carnavalizar no centro da cidade ou em Madureira, berço do samba carioca.

Não me vaporizo mais com o éter perfumado das lança-perfumes. Também não consigo mais enxergar engarrafamentos de boêmios, romarias de bêbados, procissões de mulheres da vida arrependidas pelo longo período sem fechar os joelhos, tampouco seios e glúteos naturais e lindos de matar. Pior é ter de enfrentar os idiotizados defensores da incubada chatice do politicamente correto.

Exageradamente, eles torcem o nariz para marchinhas como Olha a Cabeleira do Zezé, Mulata Assanhada, O Teu Cabelo não nega, Maria Sapatão e Dá nela. Acham-nas preconceituosas e ofensivas, mas adoram a dança do Kuduro, a frescura do Pintinho amarelinho, as popozudas e as cachorras do Bonde do Tigrão.

Cuspo na sombra dos que preferem se esconder nos retiros supostamente protegidos do Satanás de rabo. Quanto à falta que me faz o Carnaval de minha infância e juventude, o que posso dizer além do óbvio ululante? O que em nós já foi menino não envelhecerá nunca. Quem dera!!!

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