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Sonho sonhado

Celeiro de gente boa, capital é obrigada a conviver com gente má

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Autor/Imagem:
Armando Cardoso* - Foto Fábio Rodrigues Pozzebom - Arquivo/ABr

Aproveitando a deixa poética do filósofo baiano Caetano Veloso, alguma coisa aconteceu em meu coração quando aportei em Brasília. “É que quando cheguei por aqui eu nada entendi”. Olhava para um lado buscando minhas esquinas cariocas, mas o que via eram balões, tesourinhas, quebra-molas de quase meio metro e asas de um avião que não voava. Não me assustei, mas achei engraçado ao cruzar a Asa Norte e a Asa Sul pelo Buraco do Tatu. É isso mesmo. Nunca vi o tatu, mas o buraco, devidamente urbanizado e muito bem-sinalizado, faz parte do meu folclore brasiliense. Ele está lá até hoje, como se fosse a primeira visão sonhada por Dom Bosco. A pedido de Lúcio Costa, me acostumei rápido a imaginar o céu do Planalto como o mar da minha extinta Guanabara;

Troquei a Cidade Maravilhosa pela inspiradora beleza da vastidão de Brasília. Não foi amor à primeira vista. Talvez na terceira ou quarta. E daí se ele é eterno? Com 20 anos de vida plena e ainda virginal, Brasília despontou para mim em 1984, mais precisamente na virada para 1985. Me instalei pertinho da terra vermelha e utópica do já popularesco Conjunto Nacional, de onde só saía para vislumbrar a lua e as estrelas que cobriam a Praça dos Três Poderes. Um dos principais símbolos da cidade, a praça era o palco em que o povo se reunia para cobrar melhorias para a vida do “povo oprimido nas filas, nas vilas e favelas”. Nada mais do que isso. Infelizmente, a Capital e o centro do poder foram descobertos pelos vândalos e pelos golpistas 40 anos depois.

Os políticos sérios e os sem noção chegaram antes. Alguns morreram por aqui. Assustam o povo, mas não incomodam tanto quanto o morto-vivo que perambula tentando recuperar o osso. Voltando a 1984, lembro ter passado meu primeiro Ano Novo sentado em um dos bancos de concreto incrustrado entre a moça cega do Judiciário e as obras primas do deus da modernidade, Oscar Niemeyer. Mais uma vez parafraseando o mestre Caetano, foi um difícil começo. Obrigado a encará-la frente a frente, aprendi depressa a chamá-la de minha realidade. Me encantava com os ipês multicoloridos, mas ainda não havia para mim Kátia Regina, tampouco os frutos de sua completa sedução.

Vim, vi e venci na cidade nascida de um sonho sonhado e criada para sorrir, receber, doar, capitanear e fazer sonhar. Não sinto mais falta das minhas esquinas. Brasília, esta jovem senhora de 64 anos, me convenceu a ficar. Palco iluminado de intensas transformações e repleta de diversidades econômicas e sociais, a cidade que viu surgir variadas gerações de políticos e que já enfrentou de tudo um pouco, não merecia receber tantos “patriotas” servis como recebeu em janeiro de 2023. Foi o pior dos sofrimentos. É a chamada ingratidão dos homens públicos que se acham eternos. Eles chegam, se aboletam, se dizem adoradores do que veem, vencem, se locupletam, enriquecem e, na primeira oportunidade, escarram no prato em que comeram por quatro, dez ou 30 anos.

Assim são as criaturas. Como lobos insaciáveis, a cada quatro ou oito anos elas tentam transformar o berço de uma nova e robusta civilização em um covil com porteiras escancaradas e vigiadas por brucutus também ávidos pelas sobras do que seria para o povo. Criaturas desprezíveis, pois não respeitam Dom Bosco, José Bonifácio, Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Bernardo Sayão e um Patrimônio Cultural da Humanidade sexagenário. O bom da vida é que os cães ladram, a caravana passa e Brasília permanece assexuada, encantadora, livre e democraticamente de todos os brasileiros. De um quase epitáfio antecipado pela loucura de um espantalho do tipo retirante, a joia do Cerrado deu a volta por cima.

Capital de linhas arquitetônicas modernas e com monumentos históricos de fazer inveja aos mais ricos, ela é a caçula do Planalto Central. Famosa pelo misticismo e pelas histórias, glórias, conflitos, amores, desamores, mentiras, panelaços, apitaços e estardalhaços, Brasília nem sempre respirou ar puro, mas jamais deixou de expirar oportunidades e acolhimento para diferentes gentílicos, nacionalidades, etnias, raças, credos e até para forasteiros mal-intencionados. Apoiada em alicerces fortemente democráticos, ela conteve briosamente o terremoto golpista, sobreviveu e se manteve altiva, serena e acolhedora dos poderes, dos poderosos e dos que concedem poderes imerecidos aos que não mereciam estar entre nós. Esta é a Brasília que me trouxe do Rio de Janeiro para nunca mais voltar. Parabéns, dona Brasília, a mãe de todas as capitais do Brasil varonil.

*Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras

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