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Calçado de mendigo

Chico, dois pés, um sapato e a doação de Angélica

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução

De todos os seres humanos que vivem em uma cidade, provavelmente os mais desprotegidos sejam os mendigos. Todavia, essas pessoas são, também, as mais rechaçadas, como se fossem pragas dessa sociedade incapaz de encontrar lugar digno para elas. Em tempos de meritocracia, que se virem! Como se fosse simples assim.

Pois é justamente nesse quadro que se encontra o Francisco, que é apenas mais um entre tantos indivíduos em situação de rua neste país imenso chamado Brasil e que tem na capital, Brasília, um quadro gritante de desigualdades. De tão enorme, por aqui deveria ter espaço mais que suficiente para cada cidadão. No entanto, a coisa não funciona dessa maneira.

Também há de se notar a enorme religiosidade dos brasileiros. Somos, desde antes do nascimento, inundados de crenças, o que nos transforma em verdadeiros bastiões da moral e dos bons costumes. Se bem que isso, também, não procede. Seja como for, gostamos de alardear para os quatro cantos que somos assim. E ai de quem se atreva a nos contradizer. Certamente escutará um “Sai pra lá, Satanás!”

Voltemos ao nosso amigo, ou melhor, conhecido, já que mendigos não possuem amizades fora das ruas. Talvez nem por esses ambientes desprotegidos tenham algum. Quiçá o cachorro que lhes faz companhia nas noites frias de inverno. As pulgas, de certo, não fazem distinção entre o sangue de um e de outro.

Angélica, apesar do nome e de toda a sacristia que a acompanhava por onde fosse, adorava alardear que havia vencido na vida graças aos próprios esforços. Obviamente que ela suprimia o fato de ter tido pai e mãe dedicados, que até lhe deixaram certa herança: uma padaria, uma bela casa de esquina, sem contar os dois apartamentos, que lhe garantiam um bom aluguel. Completava a renda com a aposentadoria magra de professora. No final das contas, figurava sem problema na dita classe média, conforme o último censo.

A mulher, de vez em quando, passava pelo pobre Francisco. Geralmente, era o momento em que Angélica virava o rosto para o outro lado, como se sentisse repulsa daquele ser supostamente desprezível. Ele, de tão miserável, possuía apenas o pé esquerdo de um gasto sapato. De acordo com a precisão, variava de lado, seja por uma ferida que não sarava, seja por um calo mais incômodo.

Não se sabe ao certo o que fez com que Angélica olhasse pela primeira aquela figura suja Seja como for, ela o fez. E o observou por inteiro. Altiva, mas com certa dó da situação daquele homem, sentiu vontade de lhe fazer uma caridade.

– Qual é o número do seu pé?

– O que tiver, dona. Pé de pobre não tem tamanho.

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