Automóvel
Cidade
Publicado
em
Anoitecera como sempre na cidade mais bela que já viram os seus olhos.
Talvez estivesse a sonhar, talvez não, mas aquela cidade, feita de luz e de encanto, era a mais bela que já viram os seus mortais olhos.
Saída de uma neblina, envolta num encanto misterioso, com carvalhos silenciosos guardando a entrada, seria aquela a cidade do puro espectáculo que tanto ouvira falar nas lendas publicitadas dos viajantes?
Não sabia nada.
O automóvel penetrava estrada dentro quando viu uma tabuleta bem acima do seu olhar admirado dizendo numa voz interior esplendorosa:
Cidade da Luz – Bem-Vindo!
Pequenas casas ladeavam a estrada escurecida dentro da noite densa. Mal se viam. Estavam pouco iluminadas pelos faróis do automóvel que agora parecia correr como um relógio sincronizado, avançando pela neblina como um ariete de fogo, silencioso e ágil, penetrando toda aquela névoa de luzes bem acesas, com os olhos fitos e atentos ele ia prosseguindo, avançando, como que entrando em si mesmo num outro lugar.
Lentamente, a estrada começou a alargar e as fachadas das casas em redor denotavam movimentos de algumas pessoas sem cor, estavam como que ensonadas mas maravilhadas sob a luz dos candeeiros e dos néons vivos iridescentes que lhes traçavam perfis esbeltos e sofisticados em esgares súbitos de amorosa dor.
Era sem dúvida a cidade mais bela que já viram os seus olhos.
Um palhaço corre em direcção à estrada e inicia um número de malabarismo com bolas vermelhas girando e girando, subindo e descendo, girando e girando nas suas mãos ágeis. E sorria como que despreocupado com tudo.
O automóvel passa numa tangente ao seu corpo colorido.
O palhaço sorri, e faz girar as bolas vermelhas, subindo e descendo, girando e girando, despreocupado com tudo, divertido e andando.
Avançando mais o automóvel pela estrada ele encontra uma mulher da noite, vestida de preto, de ligas apertadas e batom vermelho nos lábios segurando uma bolsa onde guardava um saco de pó mágico.
Ao ver o automóvel passar, abre a bolsa, coloca o pó na mão trémula e sopra com toda a força fazendo uma cortina de fumo branco entorpecedor.
Ela fecha os olhos e cai na beira da estrada desajeitada.
Ninguém na noite para a fazer levantar.
O automóvel entra na cidade da luz como um tigre silencioso, vagaroso e com cautela, avançando na estrada e pela ruela na calada da noite sob o silêncio escurecedor dos arranha-céus.
O automóvel passa e ninguém diz nada, entra subitamente numa zona de vida comercializada.
Ao passar, numa loja envidraçada vê dezenas de ecrãs de televisão com políticos mundialmente reconhecidos apontando o dedo e gritando como labaredas ensurdecedoras. Ele lembra-se do palhaço que passara antes na estrada, que continuava o seu número de malabarismo agora com bolas de todas as cores girando e girando, subindo e descendo, girando e girando nas suas mãos ágeis.
Uma criança assiste sozinha ao espectáculo das dezenas de ecrãs de televisão, vendo tudo e ouvindo tudo, absorvida pela fascinação de políticos mundialmente reconhecidos apontando o dedo e gritando como labaredas ensurdecedoras aos seus ouvidos.
A mulher da noite, vestida de preto, de ligas apertadas e batom vermelho nos lábios, já sem bolsa, agarra na criança indefesa e leva-a de arrasto juntamente com um carrinho de compras cheio de objectos inúteis.
Moram ali perto, no fundo de um beco mal iluminado.
O automóvel e o condutor são um só, avançam pela cidade da luz como que encadeados com o estranho espectáculo.
E da estrada levanta-se um pó.
Centenas de fãs de clubes de futebol correm como touros à solta saídos do vapor dos assobios e dos gritos que vinham do estádio gigante.
Ouviam-se dos milhares de altifalantes barulhos impressionantes de anúncios a marcas berrantes gritando comprem comprem o quanto antes, enquanto a multidão se deleitava com o espectáculo das luzes alucinantes, com os carros das estrelas sonantes, com os milhões que nunca viram antes gastos em fogos-de-artifício mirabolantes.
E toda a gente tirava fotos para mostrar a toda a gente enquanto os fogos-de-artifício, o espectáculo das luzes, as estrelas emocionalmente decepcionantes, os nomes nas camisolas que já não jogavam como dantes, as vozes soando ásperas cada vez mais ásperas nos altifalantes, gritavam e gritavam insistentemente num inferno saído e transido da obra de mil Dantes.
No fim, as pessoas voltavam a casa e às suas vidas depois do espectáculo, os cinzeiros cheios de cigarros apagados como num fim de festa, alguém sem nome a varrer as ruas no final, enquanto as pessoas iam e vinham sonâmbulas, imersas e imbuídas numa ânsia de escravos querendo voltar a remar com avidez os remos das galés que navegavam as suas vidas.
O automóvel e o condutor já não sente qualquer dor ou apego e avança pela cidade da luz já sem qualquer vestígio de medo, as rodas rodando e rodando no automóvel indo ledo, destruído já foi todo o vestígio do ego.
Entra num centro comercial colossal, do tamanho de um aeroporto, talvez maior, feito apenas para pagar e passar, para passar e pagar.
Ali as pessoas transidas depositavam o esforço de um mês inteiro nas máquinas registadoras personalizadas com sorrisos dentro, trazendo sacos cheios de latas e de entulho para serem levados com esforço e sem barulho para os seus pequenos apartamentos apertados e apartados de tudo.
Sem barulho e ordenadas, algumas limpas outras não tão asseadas, iam e vinham em filas, subindo e descendo as escadas, rolantes e sonâmbulas, algumas cheias de vigor outras cansadas, rolando os olhos umas para as outras, desnudando com sarcasmo as vaidades umas das outras, envergando-se como únicas e refinadas, para sempre jovens nas suas roupas baratas serializadas, falando ao telemóvel nas tardes electricamente urbanizadas, tardes que se vão consumindo em vãs tentativas de caçadas, a pouco a pouco do sol por e de tudo desligadas.
E nos seus olhares de melancolia fria, está o aguentar o dia-a-dia, o distrair-se de ser, o apenas estar para sorver e existir no só e no parecer, o aparecer em poses cada vez mais parecidas com os actores e as actrizes das telenovelas sazonais fingidas que gritam os seus infinitos problemas emocionais na intimidade das suas casas apartadas economicamente desiguais.
Enquanto isso e por toda a terra, na intimidade das casas apertadas todas iguais, em frente ao calor das televisões e depois dos telejornais, as pessoas normais gritam os seus infinitos problemas emocionais umas às outras apartadas, apartadas e desligadas de tudo o mais.
E o esquecimento e a dor, mais o cansaço de se ser sempre escasso, faz com que todas essas novelas, rodadas em mansões e vistas em favelas, silenciem e sentenciem junto ao calor do ecrã, para onde as pessoas olham deleitadas, curiosas e sem amanhã, as suas vidas de caras amarelas tornando-se de estranhas modas seguidoras num consentir frenético de fã, eles e elas, em mansões e favelas, sem outro amanhã a não ser o desejo que siga assim sempre a vida vã.
Enquanto isso os políticos apontavam o dedo nas dezenas de ecrãs de televisões das lojas, e algures o palhaço continuava o seu número de malabarismo agora com bolas de todas as cores girando e girando, subindo e descendo nas suas mãos ágeis, girando e girando, e uma roleta girava num cassino, as apostas eram feitas num ensurdecedor barulho, quando o político deixava de apontar o dedo e de gritar como uma labareda ensurdecedora, a bola na roleta parava num número e o dinheiro das apostas era suavemente retirado da mesa esverdeada.
E logo a seguir mudava-se de político nas dezenas de ecrãs de televisão que se vendiam nas lojas. E outro político aparecia depois como salvador da colectiva dor, e zangado e irado apontava o dedo à vergonha e à indecência outra e outra vez, outra e outra vez, e a roleta girava lenta rodopiando, girando lenta e rodopiando, enquanto alguns iam e vinham apostando e apostando ávidos e em frenesi envoltos num ensurdecedor barulho com mãos ágeis e dedos leves antes que a roleta parasse.
E talvez a roleta nunca parasse pois por todo o lado tudo era tudo igual.
Um jogo estranho de roleta numa estranha encenação teatral…
O automóvel continuou em andamento lento pelas névoas e pelos miasmas da espectacularidade.
A mulher, a criança e o palhaço moravam juntos num beco sem nome lá no fundo da luz da cidade.
Viu-os a passar pelo espelho retrovisor arrastando-se na berma da estrada enquanto o automóvel avançava como um ariete de fogo pela noite estilhaçada.
A estrada estava molhada das colectivas lágrimas da noite passada.
De repente, à contraluz, o automóvel para.
O homem sai.
Dobra-se no chão como quem cai.
E chora sozinho no meio da estrada.
Um anjo branco desce e segreda-lhe ao ouvido:
Ainda não viste nada…