A pólis e o poeta
Cinco poemas de Teofilo Tostes Daniel
Publicado
em
Pós-verdade
Na artéria do tempo,
a boca do povo escolhe
uma palavra governante.
Ao acaso.
Enfia, goela abaixo
da palavra escolhida,
boatos, significados
e nonsenses.
A verve do verbo infla, plurívoca,
parecendo vaga e deslizante.
No entanto, com esse inchaço
semântico, cada vez mais
a palavra,
farta e enfastiada,
fica vazia
de sentido.
Pandemonium
a dor se candidatou a presidente no meu país
tem maioria no congresso
distribui mentiras
diz que nada dói
Marcus Vinicius Santana Lima
adestrados pela indiferença das horas
cruzamos ruas e cidades
como se a morte
não estivesse volátil
à espreita
no ar que falta aos pulmões
mil árvores queimam
mil florestas sucumbem
e num único dia 3.125 corações
chegaram a secar como rios
em tempos virais
já não há espaço
para enterrar os mortos
melhor lançá-los
aos abutres ou aos corvos
inventaram chamar
de pátria
a terra mãe
e encher-lhe de venenos
para se tornar fértil
inventaram chamar de paz
as bocas costuradas
que não podem gritar
a orfandade de mães
e filhos
e o pai manda o menino
engolir o choro
porque homem que é
homem
não sente
Homo predatoris
o mais temido dos predadores
não tem garras poderosas
suas pálidas unhas
ao menor esforço
vergam e ferem a própria carne
não tem dentes longos
e afiados como sabres
sua dentição só lhe vale
para macerar a carne das frutas
e suas gengivas inflamam
sua força mal é capaz de sustentar
o próprio peso
sobre os galhos das árvores
sua pele não suporta nem mesmo
os espinhos de uma rosa
o mais temido dos predadores
não tem a rapidez de um jaguar
a visão de uma águia
nem o tresloucado destemor
de um texugo-do-mel
o mais temido dos predadores
tem um cérebro crescido
por espécies e gerações
como um tumor maligno que consome
não só um quinto de sua energia
mas também muitas vezes a energia
da aquosa poeira cósmica
que ele habita há tão pouco
no provisório dos tempos
geológicos e intergalácticos
Não há êxtases na ideia de artifício
Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.
Ailton Krenak
é insano cultuar somente o fogo
que digere e consome
separado da terra
que acolhe e gesta
esquecido do vento
que movimenta e poliniza
e em oposição à água
que refresca e fecunda
é insensato acreditar-se acima
porque não estamos separados
da vida e sua finitude
da natureza e sua potência
do mundo e sua delicadeza
do cosmo e sua vastidão
não há êxtases na ideia de artifício
é preciso estar atento às vozes
dos que ouvem o solo fundante das perguntas
dos que escutam o marulho das terras
dos que perscrutam a sabedoria dos sonhos
dos que indagam sobre as possibilidades do amanhã
dos que resistem junto
ao verde das matas
e à fluidez dos rios
é urgente aprender
com quem celebra
o prazer a dança o canto a chuva
com quem chora a morte de um rio
e ainda ousa ideias
para adiar o fim do mundo
Invocação
Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível.
Caio Fernando Abreu
A escrita é similar
ao ato visionário
de domar dragões.
Palavras têm escamas, voam
e soltam fogo pelas ventas.
O verbo recende
cheiros verdes de ervas,
desce do mundo dos sonhos
e deita seu palavroso corpo
sobre as cinzas macias do tempo.
No ventre do verbo
habita a carne sensível
do imaginado.
Nela, mastigamos
a beleza dos nomes sem coisa.
Porque escrever é despir
o nome das coisas:
uma fantasmagoria
de vestes voláteis
enchidas de ar.
Palavra é invocação.
Lê a aura
invisível por trás
do fundo fátuo
do visível verbo.
A escrita é quimera.
Um ato similar
ao de domar dragões.
As palavras também
não conhecem o paraíso.
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Os poemas acima estão no livro “O poeta toma a pólis” , publicado em 2023 pela Editora Patuá (http://bit.ly/opoetatomaapolis). Assista ao Booktrailler e a alguns vídeo-poemas do livro abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=t6o2IS7kyKQ&list=PLlhSUFHoUhJc_8mMn9VNSRKnu4py5txMS
Teofilo Tostes Daniel é poeta e escritor nas horas cheias. Pai do Ravi e companheiro de Fabiana Turci, nas horas vagas, bendiz o ócio, lê, toca violão e canta no chuveiro. Em horário comercial é analista de comunicação do Ministério Público Federal. É autor de “O poeta toma a pólis” (2023), “Trítonos – intervalos do delírio” (2015) – ambos pela Editora Patuá”, além de “Poemas para serem encenados” (2008). Publicou também, pela Editora Primata, a plaquete “Irmanações ou poéticas fractais”, escrito com sua irmã Betine Daniel. Tem ainda contos, poemas e artigos publicados em coletâneas, revistar literárias e culturais.