O último botão
Clima acirrado Moscou x Otan se espalha e pode gerar temido apocalipse
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Escrevo este texto como se estivesse lendo um livro enquanto ele é escrito pela própria História. O cerne da questão é o clima de beligerância cada dia mais grave entre Moscou e as principais potências europeias. Logo no prefácio, a Ucrânia. Ao analisar o cenário regional, sinto que a linha entre a crônica e a realidade está tão tênue que até personagens fictícios parecem respirar o mesmo ar rarefeito da diplomacia internacional. Estou a postos – como de prontidão estão os comandantes militares russos, europeus, chineses, norte-coreanos e americanos. Sinto-me como um repórter escondido nas ruínas do tempo.
O quadro é grave. No quarto dia da semana, quando os relógios já não marcavam o tempo, mas a iminência, o mundo acordou com uma notícia que soava como o toque da última trombeta: a Rússia, sempre austera em sua retórica, disse desejar a paz — mas com os dentes à mostra. E como os profetas do Antigo Testamento, não falou por parábolas: “Se mísseis de longo alcance da OTAN chegarem a Kiev, o estopim será aceso. E a chama será a da Terceira Guerra Mundial.”
O comunicado, envolto no tom de diplomacia envenenada que os impérios aperfeiçoam ao longo dos séculos, trazia mais do que palavras. Era um libelo contra a ilusão de normalidade, um corte no verniz do mundo civilizado. “A Ucrânia não tem operadores capazes de manejar tais sistemas com precisão”, alegou Moscou. Tradução livre: se os mísseis voarem e acertarem o coração da Rússia, é porque mãos britânicas, francesas ou alemãs apertaram o botão — e isso não seria apenas um ataque, mas um batismo de fogo global.
O Ocidente, com seu rosto sereno e seus dentes escondidos, fingia não ouvir. Entre reuniões diplomáticas e jantares ministeriais, a ideia de que “a paz ainda é possível” virou uma ladainha repetida como quem canta para espantar o medo da noite.
Mas os céus estavam ficando escuros, e não era apenas o clima. Satélites piscavam como olhos nervosos; generais escreviam memorandos com canetas trêmulas. O botão — aquele, o último, o impronunciável — começava a aparecer nos pesadelos de quem ainda ousava dormir.
E então a crônica do fim se escrevia sozinha, como se cada nova sanção, cada míssil prometido, cada discurso inflamado, fosse um parágrafo de uma narrativa que todos fingiam não estar lendo.
O mundo, afinal, não acabará com uma explosão ou um suspiro — mas com um protocolo, um disparo automatizado, uma resposta a uma ameaça percebida.
E quando perguntarem no futuro, se houver futuro, quem começou a guerra, a resposta será unânime e inútil: “Todos queriam a paz.”
Imagino eu num bunker subterrâneo do Comando Estratégico Russo, o general Anatoly Sidorov, 63 anos, exímio enxadrista e veterano da Chechênia, caminhava com o passo tenso de quem aprendeu a temer a própria sombra. O codinome da operação era “Зеркало” — Espelho. Porque tudo o que o Ocidente fazia seria refletido, milimetricamente, com o dobro da intensidade.
— Eles pensam que podem nos encurralar — murmurava Anatoly diante do painel digital com alertas piscando em vermelho. — Mas o urso, quando encurralado, não ruge. Ele estraçalha.
No centro da Europa, numa sala abafada no porão da OTAN, na base aérea de Ramstein, Alemanha, o major britânico Edward Halberd tentava explicar a jornalistas embargados que a presença de técnicos franceses em território ucraniano era “estritamente consultiva”. Ninguém acreditava nele, nem mesmo sua sombra projetada nas pastas classificadas como secretas.
— Não estamos operando os mísseis — disse, enquanto uma gota de suor traía o contrário. — Apenas garantimos que… funcionem bem.
No Ministério da Defesa da França, a ministra Claire Montaigne, ex-diplomata da ONU e célebre por seu pacifismo militante nos anos 2000, agora falava em “respostas proporcionais e preventivas”. A paz, aparentemente, havia sido redescoberta como um conceito com ogivas.
Enquanto isso, no Leste da Ucrânia, o tenente Mykola Datsenko, 27 anos, antigo estudante de engenharia elétrica, apertava o coldre do rádio e olhava para o céu noturno. Ele sabia que o sistema de mísseis franceses recém-entregues era mais inteligente que todos os seus manuais.
— Eles dizem que é fácil — comentou, encarando a tela — mas o manual está em três idiomas. Nenhum deles é ucraniano.
Era um segredo mal guardado: operadores da Legião Estrangeira, disfarçados em uniformes genéricos, circulavam pelas redondezas. O inimigo sabia. O mundo sabia. Só faltava o protocolo reconhecer.
Na embaixada dos Estados Unidos em Berlim, o analista júnior Joshua Kline, 31 anos, encontrou o que chamaria de “o telegrama fantasma”: um informe russo interceptado, cifrado em linguagem militar arcaica, declarando que qualquer decolagem não autorizada de artefato ocidental a 300km de sua fronteira seria considerado “casus belli” — razão de guerra.
O informe foi lido. E ignorado.
— Devemos fingir que não vimos. Ver é se comprometer — disse o embaixador.
Joshua, então, deletou o documento. Mas ele permaneceu em sua cabeça, martelando como um versículo do Apocalipse.
Na noite de quarta-feira, quando Kiev experimentava um silêncio súbito que precede o trovão, o sistema de alerta russo acusou um lançamento. As coordenadas apontavam para Rostov. Um míssil de longo alcance, padrão SCALP, sem tripulação visível.
Anatoly não hesitou. O botão de resposta estava ao alcance da mão. Não era vermelho, nem dramático. Apenas um interruptor de segurança digital com a sigla Точка невозврата — Ponto Sem Retorno.
Ao apertá-lo, sussurrou em russo:
— Pela paz.
