Loira Gelada
Coca-cola, Severino, arte e cultura
Publicado
em
Noite de sexta-feira. Saio para a caminhada diária de início de noite no calçadão da praia de Cabo Branco, João Pessoa/Paraíba.
O rapaz chegou com educação e discurso afinado.
Ofereceu criar uma arte ali, ao vivo, manipulando fibra de palmeira. Sei, mais um como tantos artistas anônimos de praia e eu com este jeitão indisfarçável de “turista” do Sul. Agradeço, mas não travo a brilhante exposição de seus argumentos. Chama-se Severino, Severino da Silva Neto. E o rapaz foi desfiando a narrativa em torno das dificuldades e peripécias de um jovem que caiu na lida do mundo bem cedo. Fugiu de casa, em Cajazeiras, lá no sertão da Paraíba, aos 16 anos. Seu maior sonho era conhecer o mar. E foi assim.
Na capital, João Pessoa, há dez anos, conheceu uma mulher também ainda adolescente a quem deram o nome de Estelamaris. O mar, sempre ele presente em sua vida.
“Pode parecer que é coisa de invencionice, dotô, mas nada…É não! Achei o nome dela meio escalafobético, mas tinha melodia e, claro, tinha o mar. Tempo depois é que percebi que era alguma coisa parecida com Estrela-do-mar…Estelamaris. E foi assim”, contou-me o Severino, artista ainda com cara de menino.
Enquanto contava, foi tecendo com extraordinária rapidez e talento uma ave com a rama de fibra de palmeira para o espanto de uma menininha que parou no calçadão; uma menininha hipnotizada pelo artista numa praia do Nordeste brasileiro, uma das poucas praias que não foram contaminadas pelo vazamento de óleo que há dois meses inferniza a vida destas gentes.
E veio a pergunta de Severino:
— Dotô, permita-me a pergunta, mas um calorão deste e o senhor bebendo Coca-cola? Tem jeito, não…e sexta-feira? E aquela “loraça” sagrada?
Sorri e expliquei-lhe que gostaria, mas que não deveria por necessidade e opção.
“Já tomei todas as “geladas” que estavam estocadas para mim, Severino…agora é o tempo da Coca-cola e dos incríveis sucos daqui”.
Ele também sorriu e aquele sorriso de compreensão e cumplicidade encheu-me de alegria. E mandou de lá,
“Sei sim, estas coisas quando fazem mal para o corpo é ruim, mas quando mexem com a “cabeça da gente”, com a alma…Arre, vixi!…o dotô tá certíssimo”.
Assim, quando dei por mim, havia quase trinta minutos “viajando” naquele encontro.
E foi então que o jovem Severino finalizou a sua obra dando forma e vida à fibra de palmeira que, agora, brilhava feito uma ave, uma arara talvez, nas mãos da menininha literalmente encantada. Transmutação e magia pura. Poesia. Cultura.
A mãe da criança deu vinte reais nas mãos de Severino e não aceitou os dez de troco. Pagou um mínimo por tão infinita arte materializada no sorriso da pequena filha. Tomou a menina pelo braço e lá se foram “voando” junto com a ararinha de palmeira.
O tempo voltou a passar muito rápido; quando virei-me, lá estava o jovem artista abordando e tentando mostrar a sua arte a um casal (típicos turistas aposentados) em uma mesa sobre a areia da praia.
— Olha aí, dotô, eu transformo palmeira em arte…vai aí uma rosa para a patroa…uma flor para outra flor?, lançou o meu novo amigo vendedor de poéticas praieiras.
O homem parecia irritado. Sem levantar os olhos para Severino apenas balbuciou: “Não! Estamos conversando, não quero comprar nada!”.
Impasse e cena de quebrar narrativa de encanto. Mas o rapaz, jovem, mas experiente de praia e de mundo, não perdeu a classe e tirando outra peça de fibra tecida anteriormente e guardada ali para ocasiões especiais, lascou de lá:
— Pois bem, dotô, não precisa se enfezar!…fique então de presente este gafanhoto horroroso…leve para a sogra…demonstre o seu amor ao mundo, dotô…olha o enfarte!”.
Jamais esquecerei o olhar do jovem Severino ao despedir-se de mim já no outro lado das mesas do quiosque “A Forrozera”, no meio das areias branquinhas de Cabo Branco.
Deixei sobre a mesa metade da Coca-cola quente como o inferno e escura feito o óleo criminoso e tão desumano quanto a atitude daquele “dotô” para com Severino.
Vida que segue.
*O meu celular mequetrefe já estava sem bateria e não pude fazer a foto de Severino, a ararinha, a menina, o dotô/neuras e nem a foto do gafanhoto horroroso que Severino deu ao dotô.
(*Em tempo: estão fotografados em meu imaginário).
Mas juro que foi assim…
É não?…
É sim!
…………………..
Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor/pesquisador. Conheceu Severino quando em viagem à Paraíba, em 2019. Vive, hoje, na vila da Guarda do Embaú, litoral de SC.