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O legitimado

Colégio Eleitoral crava Biden; é o fim do chororô

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Mariana Sanches/BBC News - Bartô Granja, Edição

O Colégio Eleitoral americano cimenta, nesta segunda, dia 14, o nome de Joe Biden como o 46º presidente da história dos Estados Unidos. Meramente um rito protocolar nas eleições americanas do último século, em 2020 a reunião dos delegados eleitorais acontece enquanto o atual presidente, o republicano Donald Trump, segue repetindo acusações infundadas de fraude eleitoral, se recusando a conceder a derrota ao democrata e investindo em tentativas de reverter o resultado.

Nos 37 dias que separaram o anúncio da vitória de Biden (projetado pela imprensa no dia 7 de novembro) da data para a chancela do democrata no Colégio Eleitoral, Trump lançou mão de diferentes recursos para tentar impedir o desfecho.

Suas investidas foram derrubadas por diversas instituições americanas. Foi o que se viu nas certificações de votos pelas autoridades eleitorais dos 50 Estados (depois de uma série de recontagens), nas dezenas de negativas dadas por tribunais em Estados como Geórgia, Michigan e Pensilvânia aos pedidos dos advogados de Trump para o descarte de votos em massa, e na recusa de parlamentares estaduais desses mesmos Estados ao chamado do republicano para que ignorassem os resultados das urnas e indicassem ao Colégio Eleitoral delegados que garantissem a ele um novo mandato.

A confirmação de Biden no Colégio Eleitoral deve efetivamente impossibilitar qualquer tipo de virada de mesa e assegurar que o democrata passe a ocupar a Casa Branca em 20 de janeiro de 2021. Isso significa que Trump abandonará a linha de ataque e concederá a eleição? Do lado de Biden, o presidente eleito terá um início de governo no qual será capaz de implementar o seu programa? A resposta para as duas perguntas é: não necessariamente.

À exceção de Wisconsin, que garantiu a Biden dez delegados no colégio eleitoral, todos os demais Estados americanos certificaram seus resultados antes do dia 8 de dezembro. A data é um marco importante. “Sempre que um Estado finalizar sua lista de delegados no prazo de Safe Harbor (ou Porto Seguro), em 8 de dezembro, esses resultados são essencialmente protegidos por lei federal e não podem ser alterados”, explica a analista política Regina Argenzio, da consultoria Eurasia Group.

Na prática, a regra do Safe Harbor deve tornar extremamente improvável que a Suprema Corte aceite se envolver no processo eleitoral e alterar o resultado da disputa, o que poderia ferir a autonomia dos Estados.

Trump pretendia contar com o Judiciário desde a campanha. “Acho que isso vai acabar na Suprema Corte”, chegou a dizer o presidente, cerca de um mês antes do pleito.

Trump indicou três juízes para o tribunal, uma delas, a conservadora Amy Coney Barrett, foi empossada nas semanas que antecederam a eleição. Diante das derrotas nos judiciários estaduais, Trump e os aliados passaram a contar cada vez mais com a intervenção dos nove juízes da corte.

“As derrotas nos Estados acontecem porque os juízes ali estão muito politizados. Mesmo os indicados pelos republicanos podem não gostar do presidente. A Suprema Corte é hoje o tribunal menos político do país”, afirmou à BBC News Brasil Michael Johns, fundador do Tea Party e aliado de Trump.

A declaração, dada por Johns no começo da semana passada, no entanto, logo se mostrou infundada. Na sequência, a Suprema Corte rejeitou dois pedidos de Trump para alterar o resultado das urnas. O primeiro, formulado pelos republicanos da Pensilvânia, requeria que a máxima instância judiciária americana revogasse a certificação de votos no Estado, que deu a vitória a Biden e garantiu ao democrata 20 delegados.

Mas a principal aposta de Trump era no segundo pedido, uma ação movida pelo Procurador Geral do Texas, o republicano Ken Paxton, que acabou derrubada na corte na noite da última sexta-feira.

A autoridade texana pedia que os juízes desconsiderassem o resultado de quatro Estados nos quais Trump perdeu: Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin. E embora a peça fosse considerada frágil na apresentação de evidências de fraude eleitoral, 17 procuradores-gerais republicanos de outros Estados e mais de 120 congressistas do partido subscreveram a peça, como prova de lealdade a Trump e forma de pressão política.

A Suprema Corte não se impressionou e, à exceção de dois membros, votou pela derrubada da ação, indicando que o veredicto do Colégio Eleitoral deverá ser mantido.

“Acho que efetivamente assim que o Colégio Eleitoral votar, os votos estarão contados oficialmente e pronto. A Suprema Corte disse essencialmente que a eleição já acabou. Trump provavelmente ainda fará algum tipo de gesto simbólico tentando desafiar este resultado”, afirma o cientista político da Universidade de Boston Thomas Whalen.

O gesto simbólico a que Whalen se refere deve acontecer no Congresso.

O processo eleitoral americano prevê que cabe aos congressistas, no dia 6 de janeiro, contar oficialmente os votos dados no Colégio Eleitoral e ratificá-los. É nesse momento que Trump poderá tentar a sua última manobra para invalidar a vitória de Biden.

A Constituição americana permite que um deputado e um senador levantem um desafio ao resultado e forcem uma votação tanto na Câmara quanto no Senado para subverter (ou confirmar) a eleição. O deputado republicano do Alabama Mo Brooks, aliado a Trump, já anunciou que lançará o desafio.

Não será difícil para ele encontrar um senador que se alie à empreitada. De acordo com um levantamento do jornal The Washington Post, dos 249 parlamentares republicanos no Congresso, apenas 27 reconhecem publicamente a vitória de Biden.

A jogada, no entanto, é natimorta. Isso porque, para prosperar, a iniciativa precisaria do apoio da maioria dos congressistas nas duas casas. Os democratas dominam hoje a Câmara e jamais apoiariam a medida para derrubar seu próprio presidente.

A sucessão de derrotas judiciais não deve, no entanto, parar os aliados de Trump, ao menos por enquanto.

“Não há prazos limites (de apelação), nem mesmo dia 20 janeiro (data da posse), quando se trata de fraude eleitoral. Esses prazos artificiais são apresentados como se de alguma forma o problema de fraude fosse sumir quando ultrapassássemos esses limites. E eu não vejo qualquer indicação disso. Há mais evidências disponíveis hoje da magnitude da fraude do que havia um dia após o dia da eleição em 4 de novembro”, afirma Michael Johns, um dos fundadores do Tea Party.

Mas até agora juízes de 6 Estados rejeitaram as supostas evidências a que os trumpistas se referem, e a Suprema Corte rejeitou pedidos para interferir nos processos eleitorais estaduais.

Para Thomas Whalen, a maior preocupação dos republicanos já não é tentar manter Trump na Casa Branca em 2021, mas estabelecer uma narrativa que fortaleça a posição do partido durante os anos de oposição ao governo Biden e na disputa presidencial em 2024.

“O que Trump está tentando fazer é construir esse discurso político de que a eleição foi roubada, que houve uma facada nas costas da democracia americana. E isso significa que daqui quatro anos, ou ele mesmo ou um sucessor que aponte possa dizer aos eleitores republicanos que chegou o momento da restauração, algo como ‘vamos retomar o que eles roubaram de nós da última vez'”, explica Whalen.

Nesse processo, não é esperado que Trump conceda a derrota e é provável que ele sequer participe da cerimônia de posse de Biden. Como explica o aliado Johns, “por que Trump participaria de um evento ao qual não quer dar credibilidade?”

A ausência na posse seria apenas mais uma peça no tabuleiro de ações recentes do republicano. A administração Trump, por exemplo, adiou por mais de duas semanas o início oficial do processo de transição governamental, que costuma acontecer tão logo o nome do vencedor do pleito seja público.

“Seria sem precedentes, na era moderna, que um presidente em exercício não comparecesse à posse de seu sucessor. Apenas três presidentes fizeram isso na história, sendo o mais recente deles Andrew Johnson, em 1869. Mas, dada a natureza sem precedentes com que Trump moldou toda a sua carreira política, não seria nem um pouco surpreendente se ele ficasse de fora da posse”, afirma Argenzio.

A Casa Branca tem silenciado sobre os planos de Trump para 20 de janeiro e não confirma os relatos de que ele planejaria, inclusive, anunciar sua candidatura para a eleição de 2024 nesse mesmo dia, em um evento paralelo.

Ainda que opte por uma saída mais discreta em janeiro, não há dúvidas de que Trump não abandonará a carreira política.

“Se eu tivesse perdido uma eleição como ele perdeu, eu também estaria ansioso para concorrer de novo”, explica Johns.

E a largada em sua carreira política sem mandato será confortável. Isso porque, desde o dia da eleição, Trump conseguiu arrecadar mais de US$ 200 milhões. O dinheiro foi obtido junto a eleitores republicanos dispostos a financiar os esforços judiciais da equipe de Trump.

No ato da doação, no entanto, eles assinavam um termo em que autorizavam o uso dos valores para outros fins que não as disputas jurídicas. Estima-se que 75% do montante arrecadado já tenha sido direcionado ao novo Comitê de Ações Políticas de Trump, batizado de Save America (Salve a América, em português).

Entre outras atividades, o dinheiro poderia bancar uma possível turnê de comícios pelo país nos quais Trump repetiria suas acusações infundadas de fraude eleitoral, em uma espécie de campanha fora de época, enquanto Biden estivesse no comando em Washington.

“Nunca tivemos isso nos EUA, mas o que Trump tentará fazer é comandar um governo de exílio. Basicamente ele vai desafiar a legitimidade do governo eleito, e estabelecer uma situação em que o país vá se dividir ainda mais profundamente. É algo com potencial de detonar violência a qualquer momento”, diz Whalen.

As tensões das últimas semanas já têm desaguado em situações de ameaça e violência. No último sábado, uma manifestação de milhares de americanos pró-Trump na capital americana, que contaram com a presença de grupos nacionalistas brancos como os Proud Boys, degringolou para brigas de rua com grupos oposicionistas. A polícia contou ao menos quatro pessoas esfaqueadas.

As autoridades eleitorais também têm enfrentado coerção. Há dez dias, por exemplo, manifestantes armados pró-Trump se reuniram em frente à casa da secretária de Estado de Michigan, Jocelyn Benson, e exigiram que ela anulasse os resultados da eleição presidencial de 2020 em seu Estado. Dentro de casa, Benson tentava lidar com a situação sem apavorar o filho dela, de 4 anos, com quem preparava decorações de Natal.

Como se o cenário de pandemia e crise econômica não fosse suficientemente desafiador para um governo estreante, Biden chega à Casa Branca como um presidente ilegítimo para uma parte significativa da população americana e uma parcela da opinião internacional. Uma pesquisa do Instituto YouGov e da rede CBSNews divulgada no último dia 13 mostrou que, enquanto 62% dos americanos afirmam que Biden é o legítimo vencedor do pleito, para 38% ele é um presidente ilegítimo.

“A extensão e o impacto da diminuição da confiança pública no resultado das eleições são, no mínimo, incertos”, afirma Argenzio. Diante dessa situação, o democrata pode não contar com a mesma condição de impulsionar sua agenda que costuma beneficiar os governantes recém-ungidos nas urnas.

O sucesso do governo Biden dependerá em boa medida de um novo resultado eleitoral: o Estado da Geórgia, no qual o democrata venceu Trump por apenas 14 mil votos de diferença, definirá apenas em janeiro os ocupantes de duas cadeiras no Senado.

Se ganharem as duas, os democratas terão maioria na Casa e garantirão poder suficiente para cumprir suas promessas eleitorais. Se perderem as duas, cenário mais provável segundo os analistas, a administração pode virar uma espécie de faca sem fio de corte.

“Caso os democratas percam, grande parte da ambiciosa agenda de Biden, inclusive sobre mudança climática, ficará bloqueada por um Congresso dividido. Ele terá que governar por ordem executiva, como fez Obama ao longo de seis anos. Outros itens importantes da agenda, como aumentos de impostos sobre empresas e ganhos de capital, aumento dos gastos federais com saúde e educação, etc., também são improváveis de serem realizados com um Senado Republicano”, afirma Argenzio.

O histórico de atuação de Biden por quatro décadas no Senado e a antiga relação de parceria dele com o líder republicano na casa, o senador Mitch McConnell, são aspectos que poderiam aumentar as chances das propostas do governo de obter apoio bipartidário. Mas o discurso não conciliatório de Trump e o fato de que, entre seus eleitores, 82% veem Biden como ilegítimo tendem a forçar um posicionamento menos negociador dos republicanos.

Biden terá ainda a difícil missão de conseguir consenso dentro de seu próprio partido.

Insatisfeitos com algumas de suas escolhas para o gabinete presidencial, como o selecionado para liderar o Departamento de Defesa e o escolhido para a Agricultura, líderes democratas mais à esquerda já prometeram votar contra os interesses do novo presidente no Congresso em alguns temas. Se os republicanos parecem muito coesos em opor Biden, os democratas parecem bem mais dispersos em seu apoio.

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