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Quando havia o amanhã

Como todo idoso, vivemos presos à eterna utopia da esperança

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Júnior - Foto Rafa Neddermeyer/ABr

Hoje eu acordei e com saudades do meu tempo de criança. Lembrei da Banda de Chico Buarque e me emocionei com a Banda de Ronnie Von. São bandas diferentes, mas me fizeram lembrar daquele banco da pracinha, onde até os passarinhos me reconheciam. Ouvindo a banda passar, refletia sobre a vida e percebia desde aquela época como é difícil entender o ser humano, cuja maioria briga com os vivos, mas oferece flores aos mortos, manda os vivos à PQP, mas deseja um bom lugar aos defuntos.

Coisas que a gente só alcança quando lembra que temos entre nós um morto vivo que ainda vai encher o saco dos brasileiros até que seja convidado para liderar, ao lado de Benjamin Netanyahu, o grupo palestino Hamas. Disso eles entendem.

Com a devida licença de Zeca Baleiro, acordei tristinho, mais sem graça do que a top model magrela na passarela. Estava sozinho, mais solitário do que um paulistano e mais bobo do que um palhaço do Circo Vostok. De repente, descobri que cresci e que, após décadas de novelas das duas, das cinco, seis, sete, nove e atualmente das 11h, a televisão me deixou burro, muito burro demais.

Como disseram os cabras do Titãs, agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais. Até o sorvete da carrocinha me deixou gripado pelo resto da vida. Talvez eu esteja errado ao culpar as coisas pela minha alienação pós-juventude.

Provavelmente eu tenha esquecido de que a culpa é exclusiva da forma como utilizamos as tais coisas, entre elas a TV e o automóvel. Sem modéstia, me incluo na lista dos mais inteligentes, mas, às vezes, chego à sala e não me lembro o que pediram da cozinha. A lentidão do cérebro certamente é causada pelo acúmulo de conhecimento e, às vezes, pela falta do que fazer.

Aliás, o excesso de informação nos causa defeitos na audição. É como um disco rígido de computador ficando lento porque está cheio de arquivos. Nada preocupante, na medida em que sabemos que pessoas da minha idade não têm mais fluxo menstrual, medo de morrer, tampouco de engravidar, pois a maioria tem a sorte de estar quase velha e preferir os tais casamentos abertos.

Horários? Morreremos sem eles. E sabem por quê? Simples! Não vamos mais à escola e nem ao trabalho. Todos os nossos dias são sábados e domingos. Temos mesada e moradia digna, não somos forçados a chegar em casa na hora pré-estabelecida, temos carteira de motorista e alguns até carro quitado.

As mazelas são muitas. Contra elas, particularmente uso constantemente a positividade, os amigos, a alegria e as consequentes gargalhadas. Na ausência de público, rio de minhas próprias piadas. Carnívoro por definição, aprendi a comer salada e nozes por obrigação. Da mesma forma que bebo água sem sede, durmo o suficiente, ainda que não tenha sono.

Jamais recorro à idade, ao passado ou às reclamações para resolver imbróglios de hoje. Esperar para descansar, nem pensar. Como tenho meu próprio ritmo, descanso sem esperar. Por isso, sempre acordo “com uma vontade danada de mandar flores para o delegado, de bater na porta do vizinho para desejar-lhe um bom dia e de beijar o português da padaria”.

Penso algumas vezes antes de atender à sugestão de Zeca Baleiro por conta de uma razão secular: vou acabar lembrando aquela bicha burra que torce pela reencarnação para voltar hetero. Habitualmente, faço tudo que quero pela manhã, de modo a sobrar mais tempo para ficar à toa.

É claro que nem sempre o dia é dos mais felizes. Seria uma triste rotina. Dia desses, não perdi mais do que cinco minutos entrando, nessa ordem, no banco, na padaria e na farmácia. Eram quadras diferentes, mas muito próximas uma da outra. Mesmo contra a vontade, tive de me render a um novo segmento do empresariado brasileiro: os guardadores de carro, também conhecidos por carregadores de flanelas rasgadas e fedidas. Resumindo, remunerei devidamente os três para evitar prejuízos futuros.

Trocando em miúdos, nasci ontem como se não houvesse amanhã, mas houve. Enfim, depois do paraíso infantil, mergulhei de cabeça no Inferno de Dante e acabei como o Brasil: condenado à esperança.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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