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Marmelada, não

Confissão e culpa. Mas onde estão os 500 mi?

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Autor/Imagem:
Sonja Tavares

O suntuoso prédio onde funciona o Conselho Nacional de Justiça, em Brasília, tem transportado historiadores e juristas à paradisíaca Abrantes, às margens do Rio Tejo.

Foi no castelo daquela cidade peninsular, distante 150 quilômetros de Lisboa, que se instalou a primeira tropa napoleônica na invasão a Portugal, em 1807.

Povo de natureza pacífica, e como dom João VI havia fugido para o Brasil com toda a sua corte, os portugueses não reagiram à ocupação francesa.

E da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, quando recebia emissários portugueses, dom João ouvia que nada mudara na terrinha, ou seja, estava tudo como antes no quartel d’Abrantes.

E lá, pomposo, o general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, dava suas ordens, chegando mesmo a proclamar-se duque.

A expressão ‘Está tudo como antes no quartel d’Abrantes’, cunhada há quase 215 anos, é sinônimo hoje do Judiciário brasileiro, das mais altas às instâncias inferiores. Ou, como diria Chico Buarque a seus caros amigos, ‘A coisa aqui tá preta; muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça, e a gente vai tomando que, também, sem a cachaça, ninguém segura esse rojão’.

Essa viagem a um passado de um lado longínquo, de outro mais recente, serve para ilustrar o que muita gente define, no Brasil, como marmelada. Trata-se do agora iniciado julgamento no Plenário do Conselho Nacional de Justiça, do processo n. 0004688-68.2019.2.00.0000.

A ação refere-se a denúncia da Rede Pelicano Brasil de Direitos Humanos, sobre a cobrança de teto retroativo de interinos de cartório extrajudicial. Os valores acima da margem (ou o teto do salário de ministro do Supremo Tribunal Federal) deveriam ser devolvidos ao Tribunal de Justiça. O repasse desse excedente, porém, nunca aconteceu.

A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul apresentou três versões sobre o assunto:

Primeira versão
“[…]Portanto, nenhum interino deste estado recebe valor acima do teto constitucional de 90,25% do subsídio do Ministro do STF, sendo que a diferença auferida entre as receitas e despesas, são lançadas no sistema SIG-EX, por meio da aba denominada “Balanço Financeiro”, com repasse do excedente, quando existente, ao poder judiciário, mediante recolhimento de guia disponível no referido sistema.”

Segunda versão
“[…] Porém, como se observa, não houve decisão superior, até o momento, que determina a cobrança dos valores retroativos, o que nos parece foi um dos motivos da cobrança não ter sido efetivada pelo tribunal. Dessa forma, caso o CNJ entenda como viável a cobrança dos valores retroativos recebidos pelos interinos, no período de 9.7.2010 até 1.3.2016, este Tribunal de Justiça adotará as providências necessárias para o cumprimento da determinação do CNJ.”

Terceira versão
“[…] No entanto, avoquei os autos no sentido apenas de dar conhecimento à Procuradoria-Geral do Estado da existência deste procedimento, para análise acurada daquela Procuradoria. Assim procedi por dois motivos: a) o primeiro é que até o momento não havia nenhum comunicado à Procuradoria-Geral do Estado; e b) e porque há o risco de prescrição, caso não sejam tomadas providências para o recebimento ou não das referidas diferenças.”

A ministra Maria Thereza apresentou seu voto reconhecendo a procedência da denúncia e considerando que a Corregedoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, onde inicialmente negou os fatos e, somente e tão somente, após a denúncia e as diversas manifestações apresentadas pela Rede, foi que tomaram uma única medida, dentre tantas outras que são obrigados a tomarem, para apurar o suposto dano que chega a 500 milhões de reais:

“[…] Noutro extremo, assiste razão ao recorrente, no que tange à necessidade de cumprimento da obrigação de recolhimento, aos cofres públicos, do excedente a 90,25% da renda mensal de serventias extrajudiciais, ao longo do intervalo de tempo firmado entre 09/07/2010 e o ano de 2016.

Conforme indicado no documento Id 4309451, o TJMS está aguardando a Procuradoria-Geral do Estado, com pedido para que seja analisada a viabilidade de possível cobrança dos valores recebidos pelos interinos ou ex-interinos, no período de 09/07/2010 até 01/03/2016 ´que ultrapassarem o teto de 90.25% do subsídio do Ministro do STF´”.

O voto da Corregedora Nacional de Justiça demonstra que a Rede Pelicano fez o seu papel, lembrando que não é só comunicar a Procuradoria-Geral do Estado, a única medida cabível uma vez que houve prescrição de boa parte dos valores que deveriam ter sido cobrados. Isso não aconteceu, porém, graças à omissão das autoridades denunciadas, as quais deveria o Conselho determinar a abertura de processo administrativo disciplinar contra os desembargadores omissos e que prestaram informações inverídicas no processo.

Recorde-se, a esse respeito, que recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao determinar a abertura da CPI da COVID proferiu decisão no MS 37760 MC/DF, na qual é obrigatória a abertura de investigação quando preenchidos os seus requisitos legais e estes requisitos foram devidamente comprovados e reconhecidos pela própria ministra e pelo atual Corregedor do TJMS, desembargador Luiz Tadeu Barbosa Silva.

Por outro lado, lembram juristas, uma vez verificado o suposto dano, deveria o sistema de controle interno do TJMS ter comunicado o caso imediatamente ao Tribunal de Contas a fim de apurar e responsabilizar os envolvidos ao pagamento de débito e multa.

Essa providência é uma decorrência do que dispõe o art. 74, incisos II, IV e § 1º, da CRFB, bem como, informado ao Ministério Público a fim de ser aberto inquérito civil público e investigação criminal (art. 7º, da Lei n. 7.347/1985 e arts. 312, 319 e 320 do Código Penal).

Como nada disso foi feito na terra de Macunaíma, nada mais justo a lembrança da expressão dos irmãos portugueses. Porque, do jeito que as coisas andam por aqui, tudo continuará como dantes no quartel d’Abrantes. Ou, para empregar uma palavra comum aqui e além-mar: marmelada, não.

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