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Cambalacho

Conto inspirado, evidentemente, no tango Cambalache

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Havia um general no governo mitista que gostava de tango. Gostava não; era fissurado em. Ele implorou ao Líder que organizasse um “festival tanguero”. O homem não gostou muito, cultura não era mesmo sua praia, mas acabou topando, ia precisar do general para, sei lá, dar um golpinho, coisa pouca, se a eleição desse chabu.

Para evitar problemas, foram selecionados tangos antigões, de antes de Perón, Evita, Che Guevara e outros ícones da argentinidad. E a joia da coroa foi Cambalache, lançado em 1929.

– Não é aquele que o comuna do Caetano gravou? Que fala em Stálin e outros subversivos? – questionou, desconfiado, um araponga.

– É sim, mas vai ser cantado com a letra original – respondeu ríspido o general tanguero. Imagine se ele ia permitir que um espiãozinho chinfrim jogasse areia em seu festival!

O conjunto contratado talvez não fosse o melhor, mas com certeza era o mais ingênuo da noite porteña. Tão ingênuo que, se a cantora fosse ao cinema com um cara, ele botasse pra fora e murmurasse, ”Segura aqui pra mim”, ela perguntaria, desconfiada, “Por quê? Cê vai aonde?” E mais, eram alienados, não sabiam nada do Brasil, do governo mitista, pissirongas. Queriam apenas cantar tangos e ser pagos em dólares ou reais, que o peso, tadinho…

O festival não reuniu muita gente. Além do mais, o Mito havia ensinado que a Argentina era um país comunista. Mesmo assim, o lamento dos tangos foi conquistando a audiência.

O general, por sua vez, estava no sétimo céu. Ensaiou uns passos de tango no camarote VIP, pensou em enlaçar o Mito para tanguear, mas se conteve. Que pena, seria algo inesquecível!

Soaram os acordes insolentes de Cambalache. O público gostou, tentou cantar junto… Tudo foi bem até a estrofe: “Que falta de respeto/Que atropello a la razón/Cualquiera es un señor/Cualquiera es un ladrón/Mezclados con Stavisky/Van Don Bosco y la Mignón/Carnera y Napoleón/Don Chicho y San Martín…

Não se sabe se foi o sotaque bonairense ou se o gado, as quatro patas atrás em relação a coisas argentinas, entendeu mal. Mas alguém gritou:

– Os comunas chamaram o Mito de Bozo! Cantaram “Vão o Bozo e la Mignon!”

Outro agravou o mal-entendido:

– Filé mignon? O novededos prometeu picanha pros pobres, agora já é filé mignon?

O coro de ódio tornou-se ensurdecedor:

– Petralhas! Vão pra Cuba!

Os pobres tangueros só entenderam a palavra Cuba. Assim, depois de terminarem como foi possível Cambalache, a cantora sorriu nervosa e anunciou:

– A pedidos, una canción de Cuba: Guantanamera.

Foi demais, a tigrada invadiu o palco e cobriu de pau os argentinos. Apanhou até o general, que correu – à frente da Polícia do Exército, que ele não era tatu pra ir sozinho – em defesa de seus queridos tangueros. Em seguida, machucado e enraivecido, ele voltou ao camarote VIP e enquadrou o presidente:

– Queria meus blindados pra dar um golpe, né? Enfia eles onde o sol não brilha!

E assim sobreviveu a democracia brasileira. Devido à resiliência das instituições y a un tanguito, no más.

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