Ceguinho
Conto inspirado no tango Viejo Ciego
Publicado
em
Todo velho cego toca um instrumento musical. José se enquadrava em mais de dois desses três termos da oração, digamos, em uns 2,5: era velho, tocava (bem) violino e não era cego, mas fingia ser. Daí o 0,5 ponto.
Ele integrava um conjunto musical que percorria as províncias da Argentina, se apresentando em boliches e festas locais. Era a grande atração da trupe, solava, com seu violino, velhos tangos bem lentos e bem tristes, que faziam muita gente chorar. (Sem dúvida, a forte aguardente generosamente entornada também contribuía para isso.)
Certo dia, José acordou com um terçol brabo. Mas não podia abandonar os companheiros, colocou óculos escuros e foi tocar. Deixou, como sempre fazia, o chapéu pendurado na cadeira, mas o vento o derrubou no chão, aberto para cima. Ele não percebeu, tocava de olhos fechados, entregue à música e à poesia lancinantes do tango. Só no final viu que seu chapéu estava cheio de dinheiro, gorjetas deixadas para o ceguinho, coitadinho.
Foi assim que tudo começou. Ele jamais disse que era cego e nunca pediu um tostão, mas tocava de óculos escuros, o rosto o mais imóvel possível, o chapéu aberto para cima no solo. O dinheiro extra chovia, ganhava mais de duas vezes a sua parte como integrante do conjunto.
Certa noite, depois de seu grupo se apresentar em uma festa de casamento, ele transferia o dinheiro do chapéu para os bolsos quando sentiu, pelo perfume, uma mulher passar bem junto dele. Olhou-a sob os óculos, era a mais bonita da festa, mas tinha dono, havia tangueado a noite inteira com um sujeito de ar feroz e possessivo, com cara de pouquíssimos amigos (mais provável, nenhum). José escapar um suspiro, mescla de admiração e tesão (era velho, mas não estava morto). Azar dele, o corno em potencial deu-lhe um bofetão e exclamou:
– Você diz que é cego (mentira, José nunca dissera isso) mas tá babando na minha mulher (verdade), né, veio sem vergonha?
E começou a chutar o “ceguinho”, caído no chão.
Antes de desmaiar, para só recuperar os sentidos na Santa Casa da cidadezinha, José ainda pensou:
“E eu que achava que, quando morresse, iriam acompanhar meu enterro entoando tangos, milongas e outras canções… Bobagem minha, perigo partir sob uma chuva de pontapés e palavrões!”