Chuva que inebria
Crianças revivem o tempo da felicidade nordestina com as memórias dos seus pais
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No Nordeste a chuva não é só água. É promessa. É festa. É milagre caindo do céu. Quando as nuvens escuras se formam no horizonte, os olhos brilham como quem vê esperança se aproximando. Para os adultos, ela renova a terra seca, prepara o chão para o plantio e enche de alívio os potes de barro. Para as crianças, é muito mais: é o início do tempo da felicidade.
Naqueles dias em que o céu despeja suas bênçãos sobre o chão rachado, os meninos e meninas saem correndo descalços, de roupa leve ou nenhuma roupa, com gritos que competem com os trovões. Pés na lama, braços abertos para o céu, gargalhadas soltas no ar úmido. É ali que se moldam as memórias mais puras da infância nordestina: sob a chuva.
A água escorrendo pelos telhados de barro, formando rios nas calçadas e espelhos d’água nos quintais, vira cenário de brincadeiras eternas. Barquinhos feitos de folha de bananeira navegam pelas correntezas improvisadas. O cheiro da terra molhada mistura-se ao som das mães chamando das varandas: “Menino, sai da chuva!” — mas ninguém quer sair.
As vozes do passado ecoam na memória dos que cresceram sob esse céu: o barulho do tambor de lata batucado com colher de pau, as cantigas de roda, a sopa quente servida depois da farra molhada. Tudo isso vira parte da alma. Porque o nordestino não esquece: foi na chuva que muitos encontraram o primeiro sentimento de liberdade.
E assim, cada gota que cai sobre o sertão não molha apenas a terra — molha o coração. Reacende lembranças, renova esperanças, e mostra que a felicidade, por aqui, sempre soube se esconder nas coisas mais simples. Como a chuva. Como a infância. Como o riso de uma criança nordestina dançando sob o céu.