Ladrilhos
Cuidado com o que deseja
Publicado
em
João Carlos, o Juca, era escritor. Aos 64 anos, havia publicado dois livros de crônicas, bem avaliados pela crítica, mas fracassos de vendas. Ele não se importava muito, escrevia por prazer, a elaboração de textos e a leitura ocupavam boa parte de seu tempo. Conhecia, é claro, crônicas dos mais diversos autores, com destaque para Rubem Braga, Fernando Sabino e outros que fizeram dessas miradas para o cotidiano o gênero brasileiro por excelência. Quanto a seus contemporâneos de mais renome, acompanhava suas produções, era preciso, porém não se deslumbrava, considerava-se, no mínimo, tão bom quanto eles.
A grande paixão de Juca era a poesia e, em especial, a de Carlos Drummond de Andrade. Dotado de forte imaginação visual – atributo importante, quando enveredava pelo gênero conto –, criava cenas que, em certa medida, complementavam e, mais ainda, sintetizavam seus poemas prediletos. Para o clássico “No meio do caminho”, por exemplo, havia criado a imagem de um homem tropeçando em uma pedra (algo ausente, diga-se, dos versos de Drummond). Quanto a “José”, a imagem era a de um homem que avança, com fisionomia resoluta, em meio à bruma, à escuridão.
Mas ele tinha dificuldades em encontrar a síntese visual para um de seus poemas prediletos, “Campo de flores”. Via-se, com sua namorada Leila (era divorciado, ela também), vivendo “um amor no tempo de madureza”, mas empacava em sua passagem predileta: “Mas, porque me tocou um amor crepuscular/ Há que amar diferente. De uma grave paciência/ Ladrilhar minhas mãos. (…)” Para Juca, essa era a chave do poema, mas não conseguia reproduzi-la em uma imagem.
– Como a paciência pode ladrilhar mãos? – dizia continuamente, mais exasperado a cada repetição. – Como é ter as mãos cobertas de ladrilhos?
Certa noite, ao deitar, pensou, “Ah, se eu pudesse experimentar na carne a sensação de ter as mãos cobertas de ladrilhos…”. E adormeceu.
Os deuses riram.
Na manhã seguinte, ao se vestir, Juca sentiu algo frio quando tocou um braço. Olhou para as mãos e viu que, as pontas dos dedos, a parte mais carnuda deles, haviam se tornado geladas e lisas, sem impressões digitais.
“Dedos ladrilhados, uau!”. E resignou-se a esperar para ver se a transformação prosseguiria, até cobrir todos os dedos e as palmas das mãos.
Nesse dia, Juca percebeu que a paciência era mesmo indispensável, porém talvez não no sentido imaginado pelo poeta. Se fizesse gestos bruscos, as coisas perigavam cair de suas mãos, e quase quebrou um dos azulejos digitais ao bater de leve em uma cadeira. Mas, bem ou mal, terminou de se vestir e saiu para encontrar Leila, passariam a tarde e a noite no apartamento dela.
A mulher não gostou nem um pouco da mudança.
– Juca, seus dedos estão frios! Nem pense em introduzir essas coisas geladas dentro de mim.
Desconsolado com a diminuição das coisas a explorar nas preliminares, Juca foi em frente, que outras partes de seu corpo estavam bem quentinhas. Mas o sexo deixou, nos dois, uma sensação de incompletude, de algo insatisfatório.
Nos dias seguintes, o cronista ladrilhado percebeu outros inconvenientes da transformação. Manejar garfo e faca, por exemplo, dava trabalho; era mais seguro encarar fatias de pizza ou salgadinhos, com a firmeza necessária para que não escorregassem das superfícies lisas.
O pior aconteceu quando estava mergulhado na criação de um texto. Estava a mil por hora, concentrado no que escrevia, quando bateu forte em uma tecla e sentiu o ladrilho de um dedo trincar. “Putz, vou ter de digitar com cuidado para não ferir as mãos”, pensou desconsolado. “Terei de pensar nesse detalhe, num momento em que estou nos braços da musa? (Juca pensava, proferia e escrevia barbaridades desse teor, era um dos pontos fracos de sua produção literária.) Ah, se eu pudesse voltar a ter dedos sem ladrilhos, só de carne!”
Os deuses riram, porém dessa vez com uma pitada de compaixão pelo infeliz escritor.
Na manhã seguinte, Juca percebeu que seus dedos haviam retornado ao normal. Aliviado, examinou-os e percebeu um leve corte em um deles, já cicatrizado; naquele que se trincara quando havia digitado com força excessiva. Seu primeiro pensamento foi ligar para Leila, pedir que retomassem a relação (a malvada havia rompido com ele após a transa com as mãos ladrilhadas). Mas não ligou.
Seu segundo pensamento foi criar uma síntese visual para “Campo de flores”. Sem mãos ladrilhadas, é evidente; visualizou uma pradaria florida, onde ele e uma mulher da sua faixa etária caminhavam de mãos dadas. Mãos de carne e osso.
– É meio bobinho, meio boi com abóbora, mas é melhor que nada. E não há riscos com essa imagem – disse a si mesmo.
Restava encontrar a mulher com quem envelheceria, ambos compartilhando os prazeres, a cada dia mais escassos, de um amor crepuscular. Não Leila, pois, como a ingrata lhe dissera na ruptura, “a fila anda”; outra parceira, ainda desconhecida, o rosto oculto pelo nevoeiro, em quem esbarrasse como se tropeça em uma pedra, no meio do caminho.