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Los pálidos

Cúmplices em um projeto maldito

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Eram conhecidos como “Los pálidos”. Homero Manzi os menciona no tango El último organito, composto em 1948: “para que bailen valses (…) la pálida marquesa y el pálido marqués”. Mas os dois chegaram a Buenos Aires muito antes do tango surgir, muito antes das valsas dominarem os salões; vieram da Europa, provavelmente da Espanha, em 1810, quando a cidade era a capital do Vice-Reino do Rio da Prata.

Não se sabe se eram mesmo aristocratas, casados um com o outro, ou sequer espanhóis; mas, sem dúvida, eram cúmplices em um projeto maldito. Montaram uma estância e entregaram-se a uma orgia de sangue. Ninguém ligava, índios morriam como moscas, gauchos quase a mesma coisa.

Na segunda metade do século XIX começaram a chegar os imigrantes. Los pálidos os viam como odres de sangue ambulantes, facilmente atraídos por uma proposta de emprego, facilmente capturados, facilmente esvaziados até a última gota. Mas não eram índios nem peões, foi necessário diminuir um pouco o ritmo de consumo.

E então, no início do século XX, veio o tango. As valsas cederam lugar ao novo ritmo, muito mais sensual. O lento deslizar dos corpos um contra o outro oferecia a Los pálidos a oportunidade perfeita para seduzir o cumparsa ou a cumparsita. O discreto convite para um encontro mais íntimo, regado a champanhe, absinto e cocaína puríssima, raras vezes era recusado, e em geral terminava com um cadáver sem sangue, quase tão pálido quanto os dois malditos.

O tempo não para e, duzentos anos depois do desembarque em Buenos Aires, Los pálidos têm consciência de que está mais do que na hora de partir. Cedo ou tarde, alguém vai notar que estão por ali há muito, muito tempo, e empunhar uma estaca para verificar se as velhas histórias sobre vampiros têm fundamento. Mas ir para onde? Os demais países sul-americanos em sua maioria são quentes demais, luminosos demais, e de qualquer modo não oferecem o conforto e a sofisticação a que os malditos estão acostumados…

Então, vão ficando. A cada ano levam uma existência mais sórdida. Faz tempo que não frequentam bailes da alta sociedade. Tanguean em inferninhos sujos, tentam o jogo de sedução, mas fracassam miseravelmente. Absinto, só importado da Europa, custa os olhos da cara; champanhe francês, idem (espumante argentino, nem pensar); cocaína conseguem, da boa, mas todo cafiolo milonguero, toda prostituta do bajo fondo porteño tem acesso ao pó, malhado, e se acostumou com ele, alguns tiveram overdose com a pura. Assim, os convites para festinhas privadas são recusados – ou só atendidos se os marqueses pagarem pela companhia.

Sem alternativa, Los pálidos aceitam, e assim saciam a sede de sangue. Mas, se o líquido alimenta, não dá prazer, é algo corrompido, sifilítico, bem diferente do sangue forte de índios, gauchos e imigrantes. E é cada vez mais difícil se livrar das carcaças, antes bastava jogá-las em qualquer monturo de lixo. Por essa razão, caçam cada vez menos, apenas o suficiente para perdurar; tudo se passa como se esperassem simplesmente o fim da maldição, a hora da estaca.

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