Nalgum lugar
Cura é segredo, escrever é sagrado
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Há tanto não escrevo; ouvi que se devia ao fato de estar feliz. Bobagem. Vez ou outra, alguns pensamentos ainda me vêm poético-narrativos, mas me poupo de escrevê-los. É que, recentemente, vi nalgum lugar sobre aqueles que pensam com sinestesia e, desde então, pego-me fazendo artesanias de pensar o sabor do amarelo ou sentir o cheiro do céu.
Hoje, em que acordei demasiado silenciosa, uma raridade entre meus dias, quis igualmente escutar uma música cuja construção das imagens não necessitasse de palavras. Li nalgum lugar — perdão, meu leitor, pela imprecisão de minhas referências, bem sei que seria uma professora medíocre — que Debussy usa as espumas morrendo na areia para compor os músculos da harmonia; assim, abri as janelas para o frescor das seis da manhã tocar meu rosto quente de sono e fechei meus olhos para me encontrar com o mar.
Do meu apartamento seco em meio à clausura de Brasília, senti-me de novo com meus 25 anos numa praia, cujo nome também não me lembro, no norte da Alemanha. Prefiro as praias brasileiras, evidentemente, mas aquela lembrança me foi, e é, um aveludado abraço em meio a esse rasgo que, por vezes, chamo de existência.
À época, a vida ia dura; a estrada, longa. Mais areia, mais água, repentinamente uma floresta e um profundo silêncio. Volto meus olhos em meio à trilha e me deparo com uma placa “Kurhaus”, “casa de cura” em alemão. O resto do que senti ali é segredo até para mim: a cura duma dor antiga se operou naquela tarde.
Minha face fresca havia tornado quente, com aquele fervor que antecede o pranto imprevisto. O gosto da lembrança escorreu pelos sulcos do rosto e, em minha ingenuidade, abri os olhos para enxergar o cheiro do mar. Deparei-me com a janela aberta no planalto de agosto.
Ir à cura num fechar de olhos é loucura do corpo; mas sentir o gosto das ondas morrendo é mistério de Debussy. Ainda que livre em minha imaginação, permaneço presa à linguagem; então, como revolta, crio o silêncio só para poder viver o inexistente e me esquecer depois.
Talvez por isso não tenha escrito antes: perdida no silêncio que criei, com ardor, para mim mesma; vejo a escrita com tanta sacralidade que sua banalização macularia meu compromisso: nem sempre é preciso dizer.