Menino levado
Da vida de playboy ao diploma de ‘escrevedor’ só me faltou a Cloroquina
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Histórias antigas para amigos novos precisam ser contadas diariamente. Boas ou ruins, elas têm gloriosos lampejos de lucidez, memórias afetivas impagáveis e resquícios de uma época que nem o espelho reconhece. Por isso e, principalmente porque sou exibicionista, entendo que elas merecem ser divididas. Sei disso há milênios, mas também sei que nem sempre há tempo ou oportunidade para repeti-las. A certeza de que os antigos sabem acabou impondo esse meu silêncio negacionista. A surpresa de um jovem com meu juramento de playboy reacendeu a vontade de recuar algumas décadas para viajar nas reminiscências.
De Jeca Tatu a Jeca Total, já fui de tudo um pouco. Logo após o berço, já imaginava o mundo como uma atiradeira. Nunca acreditei em mentiras. Também nunca aceitei conselhos. O que ganhava gastava em balas e figurinhas. Embora fosse um menino levado, tinha personalidade. Tanto que matava as lombrigas – as famosas bichas – na unha. Ainda não havia Rita Lee, tampouco presidentes para recomendar Cloroquina ou Ivermectina como lombrigueiros. Tomei Ascaridil contra o verme Ascaris lumbricoides, as pílulas do Dr. Ross e Óleo de Rícino no combate à prisão de ventre, Fosfosol para memória, Anapyon como antisséptico bucal, 1 Minuto para dor de dente e Mertiolate para joelhos ralados. Só me faltou a Cloroquina.
Deixei muitas coisas pelo caminho. Parafraseando Demétrius, um grande cantor da minha juventude, nas voltas que eu dei no mundo, nas voltas que o mundo deu, passaram tantas coisas, mas só quem sobrou fui eu. Graças ao Biotônico Fontoura, até hoje vejo tanta gente acenando por onde passei. Eis a prova de que o pior resultado de qualquer mudança é quando se muda para pior. Não foi o meu caso. Bobicento e bobagento desde que nasci, lembrei da infância como a fase em que pais e filhos não se assustavam com as bichas nematódeas de reputação duvidosa, com os piolhos repugnantes, muito menos com o comunismo inventado.
Às vezes, me pego pensando em como vivi livre, colorido, nada poluído. Tinha tempo para ter e nada para fazer. Não tinha sinal de wi-fi, mas sobravam cabos me ligando à vontade de ser e de aprender. Enquanto pensava, vieram os sonhos de roqueiro tupiniquim. Junto deles, os cabelos compridos estilo Beatles, a calça justa boca de sino, o blusão de couro vermelho, o cinturão do tipo tremendão, o pisante vermelho de três andares, um carrão com rodas de rolimã e um broto em cada esquina. Antes que tudo se transformasse em pesadelos, minha desaculturada, mas sábia mãe, descia das tamancas questionando minha vida de playboy.
Vem daí o juramento, um juramento assimilado de outro mestre da música. Por meio de uma inesquecível canção, Carlos Gonzaga me fez prometer que, oportunamente, eu trocaria tudo pelo diploma de doutor. No mínimo, um de escrevedor. Jamais um de rabino ou de pastor. No mesmo hipotético documento, registrado no cartório da consciência, só pedi um intervalo para aproveitar o tempo que me restava de irresponsabilidade responsável. Faltava muito pouco para me afastar dos cabeludos que copiavam até os trejeitos dos quatro brothers de Liverpool. Foi assim que jurei deixar minha vida quase mundana.
Cortei a cabeleira, troquei as rolimãs por um Fusca e a calça saint tropez por um terno de senhor. Não me formei doutor, mas entendo mais do povo e da vida do que qualquer senador. Ouvi do velho do rio que a gente vive melhor quando não fala tudo que sabe, não acredita em tudo que escuta e aprende a rir de todo o resto. Também aprendi que as pessoas não mudam. Elas apenas nunca foram o que a gente pensou. De volta à realidade, me conforto com a certeza de que, apesar de ter abandonado a vida de playboy, estou em paz. Sobre Carlos Gonzaga, lamento que tenha partido tão prematuramente. Ele morreu em agosto de 2023, aos 99 anos. De seu legado constam dezenas de pérolas, entre elas as versões de Diana, Oh Carol, Bat Masterson e São Francisco. Boa viagem.
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Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras