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Partido Para Todos

Delúbio tenta resgatar PT raiz que evita Centrão

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Autor/Imagem:
José Seabra - Foto de Arquivo

Uma conversa rápida ao telefone com Delúbio Soares, na segunda, 30, que fechava o mês e reabria o caminho de novos 31 dias seguidos de esperança, trouxe-me à lembrança, ao fim do telefonema, os esforços que o ex-tesoureiro do PT tem feito, em viagens por esse país-continente, para resgatar as raízes do PT. Era como se visse a caravana partir antes do sol nascer, como se quisesse acordar primeiro que o próprio Brasil. No banco da frente, de olhar baixo e mãos caladas, seguia um velho amigo dos bons tempos do Partido dos Trabalhadores. Não era o mesmo de outros tempos. Os anos lhe penduraram silêncios no rosto e rugas de quem já foi bandeira, manchete, sombra e abraço.

Agora, à frente da chamada Caravana do PTT, ele não parece querer convencer ninguém — apenas escutar, talvez entender. O Partido dos Trabalhadores de Todos pode ser mais do que uma sigla renovada. É, suponho, uma tentativa de reencontro. Um fio partido entre o sonho de um país e o chão pisado por quem ainda acredita no coletivo, mesmo quando a esperança desbota.

As paradas são breves, mas intensas. Um olhar no fundo do outro. Um aperto de mão que durava segundos a mais. Em cada cidade, Delúbio se senta com os antigos companheiros como quem visita parentes distantes. Fala pouco e ouve muito. Lembrava de um tempo em que política era feita no grito de assembleia, no cheiro de graxa, no calor dos sindicatos.

Nas praças, crianças se aproximam correndo sem saber quem ele era. Idosos cochicham, alguns sorriem. Ninguém aplaudia com estardalhaço. Mas havia uma ternura discreta no ar. Era como se todos, em silêncio, entendessem que aquele homem de passos lentos carregava mais do que panfletos — carregava um desejo quase ingênuo de voltar ao início, ao coração das coisas.

Havia um tipo de poesia naquele ônibus velho que cruzava o sertão e o cerrado. As janelas abertas deixavam entrar vento e lembrança. E de cidade em cidade, entre uma feira e um assentamento, o que se buscava não era mais o poder, mas o pertencimento. O rosto do povo. A linguagem esquecida do trabalhador.

Delúbio fala em reconstrução, mas não com euforia. Fala como quem planta. Sabe que os brotos talvez não venham depressa. Sabe que o tempo hoje corre em outra frequência. Mesmo assim, segue. Porque há caminhadas que se fazem mais pela alma do que pela chegada.

E quando a noite cae e o ônibus encosta em alguma beira de estrada para dormir, ele olha para o céu e pensa em quantos ainda sonham. Porque, no fundo, tudo o que ele quer é isso – que o povo volte a sonhar consigo mesmo.

Há algum tempo Notibras publicou uma série de reportagens sobre o assunto. A primeira foi numa manhã nublada em que a caravana chegou ao acampamento do MST, em um dos muitos assentamos dos sem-terra. A terra recém-revolvida exalava cheiro de promessa, e as lonas negras balançavam com o vento como bandeiras silenciosas de uma resistência que nunca dorme.

Delúbio desceu devagar, com os sapatos cobertos pela poeira vermelha do chão. Ao seu redor, homens e mulheres levantavam estacas, cuidavam das hortas comunitárias, e recebiam o visitante com olhos desconfiados, mas não hostis. Não havia tapete, microfone nem palanque. Havia café coado, pão de milho e cadeiras de plástico dispostas em roda.

Ali, mais uma vez, ele ouviu mais do que falou. Uma senhora de mãos calejadas contou sobre o neto que estudava agronomia. Um rapaz falou da biblioteca feita com doações. Uma menina de oito anos recitou de memória o nome dos mártires de Eldorado dos Carajás. E Delúbio, com os olhos úmidos, compreendeu que aquela luta, mais do que ideológica, era visceral; era o povo plantando sua permanência no mundo.

Antes de partir, caminhou até o marco de entrada do acampamento. Tocou a madeira como quem benze. E disse, com voz quase rouca: “É aqui que a alma do partido ainda respira.”

A caravana seguiu. O tempo parecia se curvar àquela viagem. Era como atravessar páginas de um livro que o Brasil esqueceu de reler. Passaram por sindicatos esvaziados, rádios comunitárias, antigos diretórios onde ainda restavam cartazes de campanhas de outrora. Cada parada era uma espécie de oração laica. Tratava-se de um reencontro com a fé que nasce do trabalho coletivo.

E então, semanas depois, o ônibus apontou no ABC Paulista.

O céu carregado parecia chorar discretamente sobre São Bernardo do Campo. A velha região industrial — hoje mais silenciosa, mais vertical — ainda guardava nos muros e no concreto os ecos das greves, das assembleias, da fundação de um partido que nasceu para ter cheiro de povo.

Delúbio desceu no Sindicato dos Metalúrgicos. Lá dentro, alguns rostos conhecidos. Outros novos, curiosos. O salão ainda mantinha aquele ar de catedral laica, onde a esperança um dia subiu em caminhões e falou alto ao mundo.

Ele caminhou devagar até o centro do palco. Não pediu silêncio. Não pediu aplausos. Apenas tirou do bolso uma pequena foto amarelada: era de uma plenária de 1983, todos mais jovens, mais magros, mais famintos de justiça. Mostrou à plateia sem dizer palavra.

E naquele instante breve, entre o som da chuva e os suspiros de quem lembrava, houve um pacto invisível: de que mesmo ferido, o sonho ainda poderia ser reparado.

Porque há trajetórias que, mesmo longe da perfeição, se tornam necessárias apenas por tentarem de novo. E naquele fim de tarde, no coração do ABC, Delúbio não parecia um homem que voltava ao partido.

Parecia, simplesmente, um homem que voltava para casa.

Depois do reencontro no ABC, a caravana do PTT poderia ter encerrado sua jornada. Já havia o registro das imagens, os apertos de mão, os olhos marejados diante de um salão que cheirava a história. Mas algo havia mudado. O que era para ser um percurso de lembranças transformou-se em movimento.

Nas redes sociais, jovens militantes começaram a compartilhar imagens da caravana com legendas como “Voltar pra avançar”, “Povo é raiz”, e até mesmo “O novo vem do chão”. Em universidades, grupos de estudo começaram a reler textos esquecidos de quando a política ainda era feita de corpo presente. Nos bairros, panfletos brotavam em portas de padarias, e em acampamentos, novas assembleias começaram a ser organizadas à luz de lampiões, com vozes cansadas, mas inteiras.

Delúbio, que começara a viagem como um homem em busca de redenção, agora assistia, quase com espanto, a uma fagulha se acender no que julgavam cinzas. Já não se tratava mais dele. A caravana havia se tornado um organismo autônomo, respirando por si mesma, criando novos condutores, vozes, desejos.

Há quem assegure que, num ponto da viagem, um grupo de jovens lhe entregou um documento: o Manifesto da Terra e da Cidade. Eram sete páginas escritas à mão, costurando ideias de reforma agrária, economia solidária, política de vizinhança e tecnologia comunitária. Assinado por “Militantes do Amanhã”, o texto não pedia aval, mas apenas respeito.

Delúbio leu em silêncio. E ao final, sem dizer palavra, entregou sua caneta. Como quem diz “agora é com vocês.”

A caravana então virou rede. Começam a nascer “caravanas-filhas” em Pernambuco, no Maranhão, no interior de São Paulo. Nada oficial. Nada hierárquico. Apenas gente se reunindo para ouvir, lembrar e plantar ideias.

O PTT, até então um símbolo em busca de voz, começa a ganhar contorno. Não era um partido. É um gesto coletivo. Um murmúrio que se espalha devagar, como quem semeia sem pressa, mas com fé.

Delúbio, já não ocupa o banco da frente do partido que fundou. Também não discursa pregando contra quem preferiu se aliar ao Centrao. Em cada parada, senta num canto, ouve. E quando perguntam o que pode vir a ser o PTT, ele apenas sorri:

— Talvez seja só o povo querendo se lembrar de si mesmo.

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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras

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