Rostos
Depois vieram a vozes, graves ou estridentes, cada uma num tom diferente
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Os rostos surgiam na janela, olhando para Antônio. A rigor, não eram rostos, antes esboços de faces desenhados por uma criança inábil e desajeitada com um lápis preto. Olhavam-no, sérios, e depois como que escorriam pela parede, bem rápido, ele nem sabia se estavam do lado de dentro ou de fora da casa. Mas imediatamente surgiam outros, de modo que a vigilância sobre ele não cessava.
Com o tempo, os esboços de faces ganharam contornos mais definidos – aparentemente, a criança estava aprendendo a desenhar. A seriedade nas feições deu lugar a expressões zombeteiras, ele sentiu-se muito pior com a mudança. Mas continuou sua vidinha medíocre de funcionário público aposentado, tentando ignorá-los. Como se isso fosse possível.
Depois vieram a vozes, graves ou estridentes, cada uma num tom diferente, numa cacofonia insuportável. Chamavam-no, zombando dele, por um apelido de infância que detestava: Totonho. Gostava de seu nome. Carlos Antônio Mendes, mas Totonho… Fora dado pelos primos, mais velhos e mais fortes que ele, que o cobriam de porrada sempre que podiam. Ganhou ranço desse nome e, como infelizmente descobrira do modo mais doloroso possível, ainda tinha.
Os rostos careteiros e as vozes não paravam um segundo sequer, deslizavam pelas paredes – pelo lado de dentro, agora tinha certeza – ridicularizando-o. Praticamente deixou de dormir, era impossível, com aqueles sons insultuosos incessantes.
Quando achou que havia chegado ao fundo do poço, que nada podia piorar, Antônio viu os rostos, antes traçados rudimentarmente em preto, ganharem cores e se transformarem em máscaras. Zombeteiras, claro, como as de Arlequim na Commedia dell’Arte ou nos velhos carnavais do Rio de Janeiro. As vozes acompanharam a mudança, tornando-se ainda mais escrachadas. Ele viu, horrorizado, que as máscaras desrespeitosas saltavam da janela e se colavam no rosto dos transeuntes, que tremiam nas bases, mas em seguida pareciam não notá-las. Elas logo tomavam conta dos corpos, que começavam a entoar desafinadamente o apelido odiado enquanto andavam.
Ele chegou a pensar em suicídio, mas desistiu da ideia. Era uma saída aparentemente fácil, mas que assegurava o triunfo dos perseguidores. Em vez disso, pegou uma velha faca de caça, amolou-a cuidadosamente e saiu para a rua, disposto a matar o primeiro mascarado que zombasse dele.
Foi então que se aproximou uma menina de uns nove anos, por sorte sem máscara. Com um suspiro de alívio, ele guardou a faca no cinto – mas então, viu, horrorizado, uma das máscaras voar da janela e cobrir parte do rosto da criança. Ela tremeu por um momento, como se recebesse um forte impacto, e logo em seguida reiniciou a caminhada e começou a cantilena, com uma voz bem fina: Totonho, Totonho…
Ele a matou com uma única facada. Coberto de sangue, correu pela rua, ferindo mascarados a esmo, até ser atingido por uma saraivada de tiros.