Curta nossa página


Os brigões

Desafetos desde sempre

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Argemiro e João eram desafetos desde sempre, como se aquilo fosse marca registrada dos sujeitos. E digladiaram durante a infância, a adolescência, a juventude e, ainda perto dos 50 anos, trocaram alguns sopapos. Se perguntassem para qualquer um o motivo, era capaz de nem saberem ou, caso soubessem, já teriam se esquecido ao longo do caminho.

Agora já passados dos 80, as lesões corporais mútuas pareciam coisas do passado. Além do mais, não ficaria bem dois velhos rabugentos se engalfinharem. Entretanto, não era caso de reconciliação. Mas a conspiração sempre está à espreita.

Brasília, apesar de capital, é um ovo. Ovo de codorna, por sinal, onde todo mundo se conhece, seja através da sogra ou do cunhado indigesto, seja do bichano ou do papagaio da vizinha. E, por conta de tal conjuntura, eis que um dos netos do Argemiro foi se engraçar justamente por uma das netas do João.

De namorico, a coisa ficou séria. Os jovens já falavam até em casamento, como se casar fosse a coisa mais fácil do mundo. Se soubessem, nem cogitariam tal possibilidade.

O enlace já durava um ano e, por isso, os enamorados resolveram comemorar. E fizeram questão de que a parentada estivesse presente. E ai de quem faltasse!

Até aí, tudo bem, mesmo porque Argemiro e João não desconfiavam de que corriam sério risco de se tornarem parentes. E descobriram da pior forma possível.

Júlia e Roberto, o casal em questão, inocentes, puros e bestas, nem desconfiavam da longeva animosidade dos respectivos avós. Dessa forma, querendo firmar laços familiares, eis que os pombinhos puxaram Argemiro.

— Vem, vô! O senhor vai adorar o avô da Júlia.

— Depois, Roberto.

— Não, seu Argemiro. Vem conosco, que o meu avô é muito legal.

Diante de tanta insistência, lá foi o idoso conhecer o parente da quase neta por afinidade. O trio cruzou o salão e, depois de alguns cumprimentos pelo trajeto, se viu diante da mesa do João. Nenhum dos idosos parecia acreditar naquilo.

Argemiro e o desafeto, olhos arregalados, lábios torcidos, não conseguiram manter a compostura. Atracaram-se que nem meninos na hora do recreio. Foi preciso intervenção quase divina para apartar os brigões.

Lanhados, mas vivos, cada um no seu canto, foram lamber as próprias feridas. Que situação!

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

Compre aqui

https://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.