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A vida é dura

Desejos e realidade

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Álvaro andava às turras com o trabalho. Não que isso fosse algo novo, mesmo porque essa situação teria iniciado há quase 15 anos e, por coincidência ou não, no primeiro dia no emprego. E não sejamos hipócritas, pois isso é bastante comum no mundo dos normais.

Na sexta-feira, assim que deu a hora de sair do serviço, o sujeito abriu aquele sorrisão e, talvez inebriado por conta da euforia que tomou seu ser, confidenciou a si mesmo que aquele havia sido o derradeiro dia de martírio. Nunca mais! Dali para frente seria somente liberdade, o tempo apenas para gastar com coisas realmente importantes: viagens, encontros com amigos, leitura de bons livros, muita poesia, longas sonecas no sofá, vinhos, cervejas diversas, namorar sem tempo para acabar, esbórnia total.

No sábado, quis emendar e, ainda disposto, mal despertou, tomou aquela ducha para espantar qualquer cansaço porventura sorrateiro. Vestiu a bermuda e a camisa mais confortável, calçou o par de chinelo de dedo e foi para o churrasco na casa de Mariana, colega dos tempos de faculdade. Até imaginou algo com a mulher, que foi logo descartado. É que ela era casada com um robusto praticante de artes marciais. Melhor seria se concentrar nas carnes na grelha e na cerveja gelada. E foi o que fez, apesar dos arriscados olhares trocados com a anfitriã.

Retornou ao apartamento quando o domingo já se avizinhava. Por impulso, abriu a geladeira e se deparou com duas latas de cerveja, que talvez estivessem trocando confidências. Pegou uma e abriu sem pensar. Deu o primeiro gole e caminhou até a sala. Esparramou-se no sofá e tentou pensar em algo, mas os pensamentos, confusos, se esvaíram como fumaça. Mais um gole, depositou a lata no chão. Apagou sem se dar conta.

O inconveniente interfone tocou, tocou, tocou. Álvaro, cujas pálpebras clamavam por continuar cerradas, finalmente ergueu o corpo fatigado e foi ver quem era. Reinaldo, amigo de longa data, resolvera surgir do nada após quase dois anos.

— Tô incomodando?

— Não.

— Tem certeza? Se quiser, volto outra hora.

— Não.

— Mesmo?

— Não.

— Não?

— Não! Sim. Fique à vontade. Só vou lavar o rosto e já volto.

— Beleza. Tem cerveja?

— Hum… Acho que tem uma latinha na geladeira.

— Só uma?

— Acho que é. Olha lá.

Assim que retornou do banheiro, Álvaro viu a visita bebericando a derradeira cerveja.

— Só tinha esta. Vou comprar mais pra final.

— Ih, é mesmo! Hoje tem Vascão!

— Sim! Vamos acabar com o Corinthians.

— Vou com você. Preciso andar um pouco, Reinaldo.

Além de cerveja, compraram tira-gostos variados. Retornaram ao apartamento, onde ligaram a televisão para assistirem à final da Copa do Brasil.

Álvaro parecia revigorado por causa da possibilidade de comemorar um importante título do seu time do coração. O problema é que o Coringão marcou um gol, o que fez com que alguns impropérios saíssem sem qualquer cerimônia daquelas bocas angustiadas. Mas eis que o Vasco consegue empatar ainda no primeiro tempo. E os palavrões, agora de felicidade, ecoaram por todo o apartamento.

Segundo tempo, eis que o Corinthians voltou a marcar. Álvaro e Reinaldo, cada um com uma lata na mão e desprovidos de pudores, xingaram, xingaram, xingaram. Não era possível que o Vasco da Gama ficaria mais um tempo na fila, enquanto o Timão se sagraria campeão em pleno Maracanã.

Os minutos de esperança se transformaram em frustração para os vascaínos. Corinthians campeão. Sem força para chorar a derrota ou continuar bebendo, Reinaldo se despediu. Álvaro, ainda querendo se esquecer daquilo, ainda abriu algumas latas, até que, exausto, desfaleceu, completamente embriagado, sobre a cama.

Na manhã seguinte, Cida, a diarista, chegou e constatou que seria um dia de faxina pesada. E começou a limpar, pois não havia outro jeito. E, quando percebeu que Álvaro continuava dormindo, foi acordá-lo.

— Álvaro. Álvaro! Álvaro!! Álvaro!!!

— Hum?

— Num vai trabalhar hoje?

— Oi, Cida. Que horas são?

— Quase dez.

— Tudo isso?

— Sim.

— Droga! Queria que ainda fosse domingo.

— E quem é que não queria?

— Como assim?

— Álvaro, meu querido, absolutamente ninguém tá preparado pra uma segunda-feira.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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