Fezinha
Deu burro na cabeça
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Meu amigo era o dono da farmácia, naquela época, apesar de o curso universitário da profissão já existir no Brasil desde o tempo do Império (1832); a Lei 13.021, que obriga a presença de uma pessoa com formação durante todo o tempo de funcionamento desses estabelecimentos, foi criada apenas em 2014, desse modo, até a promulgação da Lei, as boticas funcionavam sem a presença de um profissional da área. Assim, a cultura popular designava, quem trabalhava em uma, de farmacêutico, e essas pessoas, de fato, sabiam muitas coisas aprendidas no dia a dia pelo tempo de exercício informal do ofício. Então, o japonês era o farmacêutico.
Eu, naquela época, início dos anos 1980, era representante comercial de um certo laboratório e foi assim que conheci Mário Sakamoto, farmacêutico, e nos tornamos grandes parceiros. Há muito não o vejo, espero que esteja bem. Hoje já deve estar aposentado, como eu, tendo passado o controle do negócio para os filhos, à época em que o fato se passou, eram dois adolescentes, um rapaz e uma moça de seus 15 e 16 anos e já “estagiavam” nos balcões da loja, no início da tarde, após as aulas ou à noitinha.
O trabalho que eu exercia nunca foi para deixar ninguém rico, mas dava para me sustentar, do alto dos meus 31 anos, recém-separado, morando sozinho sem muito luxo, dava para pagar o aluguel, água, luz e telefone; me alimentar, me vestir razoavelmente, não posso me esquecer da pensão alimentícia para meu filho, ainda bem pequeno; e ainda me sobrava algum dinheiro para exercer minha liberdade nos botecos e baladas das noites paulistanas.
Me sentia um pássaro livre. Às vezes, mesmo em dias de semana, voltava para casa alta madrugada, de preferência, com uma companhia feminina, na certeza de que no dia seguinte não precisaria despertar com o galo morador de uma casa próxima a meu prédio, pois o tipo de atividade que tinha era tudo que queria na vida, não me obrigava a horários, a não ser em dias de reunião no escritório da empresa, ou alguma visita agendada com um cliente, mas, normalmente, podia me levantar mais tarde. Aliás, o galo, muitas vezes, me recepcionava com seu tradicional “co-co-ri-có” quando chegava em casa das noites de agito.
A vida de um representante era uma montanha russa, às vezes a correria diária o consome e se não seguir de forma rigorosa seu roteiro, não raro, além das oito horas diárias, é obrigado a ir noite adentro para cumprir a agenda. Mas, por outro lado, há os momentos de calmaria; e, nesses momentos, costumava passar na
farmácia do Mário, para almoçarmos ou tomarmos um café em um lugar bem agradável que havia nas proximidades, dependendo do horário.
Ǫuando coincidia de estarmos ambos livres em uma sexta-feira, final de tarde, uma cervejinha no bar das redondezas também era um excelente programa. Claro, o principal era a presença do amigo. Muito boa-praça!
Mas aí é que a história começa. Bem ao lado da farmácia, havia uma pequena loja, meio entulhada, cuja pretensa atividade era venda de vasos de plantas. Mas o Zé, dono do empreendimento, só vendia um dos exemplares em último caso, fazia de tudo para não descompor sua vitrine e, se começasse a vender os vasos, teria de fazer o que menos queria, ir atrás de um fornecedor para repor os objetos.
Aí, você, certamente, está se perguntando: mas por quê? Ora, os vasos, na verdade, eram um disfarce. O negócio real, muito mais lucrativo, ficava rebuçado por trás de um biombo nos fundos da minúscula sala comercial. O Zé, na real, era bicheiro.
Eu e o Mário, com certeza, sempre fomos cidadãos conscientes e respeitadores das leis. Apesar disso, adorávamos fazer uma “fezinha”. E aquele lugarzinho “insuspeito”, logo ali ao lado, era um convite à contravenção. De maneira que, quando ia visitá-lo, não deixávamos de dar uma passadinha na espelunca do Zé.
Mário gostava de jogar um dinheirinho, centena e milhar, do primeiro ao quinto, número invertido, grupo, em qualquer bicho com que cismasse no dia. Vez ou outra ganhava uma mixaria. Dava para pagar um café com pão de queijo para dois, como fazíamos muitas vezes. Ou uma cerveja a mais, se fosse no final de tarde da sexta-feira. Uma ou outra vez, conseguia livrar o almoço em minha companhia ou de outro amigo do pedaço. Mas não passava disso. E essa, para ele, era a graça, apenas testar a sorte. Já eu, não, pensava “grande”, gostava, como ainda gosto, de jogar milhar na cabeça, para, se a sorte sorrisse, ganhar uma importância para lavar a égua.
Evidentemente, o que se pode obter com o “ludo zoológico” não é dinheiro para enricar ninguém, dependendo do tamanho da aposta, muitas vezes, o bicheiro nem a aceita, pois a consequência de ter que pagar um prêmio muito grande pode ser a quebra da banca. O jogo tem tradição e credibilidade, dizem que nunca deixou de pagar um contemplado desde que foi criado em 1892, no Rio de Janeiro, por João Batista Viana Drummond, uma espécie de rifa com os 25 bichos do jogo, para arrecadar fundos e recuperar o zoológico na Vila Isabel, do qual era proprietário.
Existe também, entre os banqueiros do bicho, um tipo de “seguro”, quando aceitam uma aposta, cujo prêmio possa vir a ser muito alto, redistribuem o valor entre outras bancas, assim, se jogador acertar, cada uma paga um pouco e não pesa para ninguém. Como poderão ver, isso aconteceu no meu caso.
Como afirmei, gostava de jogar de forma que, se ganhasse, o prêmio seria “compensador”. Meu hábito era insistir sempre em um milhar que me perseguia desde o Colegial, como era chamado o Ensino Médio naquele tempo. Era o número da minha matrícula na Escola Técnica Federal, onde estudei.
Depois disso, esse número costumava, e até hoje é assim, me aparecer no protocolo ao renovar um documento oficial, escrito em algum muro no meu caminho, uma placa de carro que de repente eu preste atenção. Se alguém me passa um recado anotado em um papel qualquer, no verso lá está o milhar, inteirinha e na ordem. Em determinado momento, a adotei como meu “número da sorte”. Por isso passei a, sempre que tenho oportunidade, jogar esse milhar pura, na cabeça.
Invariavelmente, quando ia a farmácia do meu amigo, jogávamos, ele a seu modo, e eu a meu, sempre a tal milhar no primeiro prêmio. Claro que comigo não acontecia da mesma forma que com ele. Ou seja, eu nunca ganhava, mas continuava insistindo na fórmula, recusando seu conselho:
-Você precisa jogar como eu jogo, se quiser ganhar alguma vez! – dizia. E eu respondia sempre:
-Para ganhar merreca, prefiro não ganhar.
Era um daqueles dias de calmaria no meu trabalho, pelo menos na parte da manhã, combinei com Mário de passar lá para irmos almoçar e, claro, fazermos uma aposta na Para Todos (PT), a extração do início da tarde. Ǫuando voltamos do almoço, o resultado já estava no poste. Incrível! Minha milhar deu inteirinha e na ordem, só que no 2º prêmio. Os números apostados por Mário, nem de perto.
Conclusão: ele não ganhou nada, e eu também não. Mário não se conformava e dizia:
-Como você é burro! Se tivesse feito como sempre falo, teria ganhado um dinheirinho.
Por coincidência, o “burro” é o bicho da meu milhar de sorte. E respondi:
-É por isso que não aceito seu conselho. Ganhar um “dinheirinho” não me interessa.
Era uma quarta-feira. Às quartas-feiras e sábados não tem a PTN (sigla para a extração Para Todos Noturna), pois valem as extrações da Loteria Federal, a oficial, embora o bicho continue sendo clandestino.
Então falei:
-Parece que hoje é meu dia de sorte! Vou repetir o jogo na Federal.
Ao que o farmacêutico retrucou:
-O quê? Eu não acredito! Você viu o que aconteceu hoje e mesmo assim vai insistir no erro. Se fizesse como falo, teria ganhado.
-Já te disse, ganhar merreca, não me interessa. Hoje é meu dia. Você vai ver.
Claro que eu não estava falando sério. Dizer que iria ganhar era um blefe e uma provocação. Mas que eu ia repetir o jogo, isso eu ia.
Vendo como não havia jeito de me demover da ideia, falou:
-Tá bom, tá bom! Faça como quiser. Mas vou te propor uma coisa: eu dobro sua aposta, jogo o mesmo número, o mesmo valor que você jogar, mas centena e milhar, do primeiro ao quinto, na ordem, invertido e no grupo. E se ganharmos, dividimos o prêmio. Fechado?
-Fechado!
E assim fizemos. Já eram 4h da tarde e minha agenda de clientes do dia finalmente iria começar. Hoje seria um daqueles dias de montanha russa, desde a manhã não havia trabalhado, mas, certamente, agora que começava, iria até tarde da noite.
Me despedi do amigo e fui cuidar da vida que os boletos são implacáveis, vencem e não querem nem saber se você tem ou não dinheiro para pagá-los.
Se nas horas de folga sou essa pessoa descontraída e brincalhona, que todos os amigos conhecem, quando estou trabalhando, principalmente em contato com um cliente, me deixo absorver, esqueço até de me alimentar e, com o perdão pela expressão, até de ir ao banheiro. Foi o que aconteceu. Nem me lembrava dos acontecimentos da hora do almoço. Ǫuando cheguei em casa, quase onze da noite, exausto, ao verificar a secretária eletrônica, havia uns 10 recados do farmacêutico:
-Você conferiu a extração da Federal? Viu a extração da Federal? Seu milhar deu na cabeça! Ganhamos uma bolada!
Muito mais conhecedor do assunto, me explicou:
-Demora alguns dias para pagarem o prêmio, pois o valor é muito alto para a banca dele. O Zé teve que repassar para outras bancas e agora, para pegar o dinheiro do prêmio, dividido proporcionalmente em relação às cotas repassadas, ele terá de ir buscar com cada um, pois, por motivos óbvios, o dinheiro não poderá ser depositado em conta bancária. Mas, não se preocupe, ele irá nos pagar em no máximo uma semana. Não estava preocupado. Sei que não há registro, em toda a história do jogo do bicho, em todos os lugares do Brasil onde haja jogo do bicho, de um único banqueiro não ter honrado os prêmios de seus apostadores, quaisquer que sejam os montantes. Como diz o bordão da “zooteca”: “vale o escrito!”
Dito e feito. Alguns dias depois Mário me ligou dizendo:
-Passe aqui assim que puder. A grana já está comigo!
No dia seguinte, entre uma visita e outra, passei na farmácia, no meio da tarde e fomos tomar aquele café. Ele me entregou um envelope abarrotado de notas de tudo o que é valor, que, naturalmente não conferi, não só por confiar cegamente no amigo, como por não ter como fazê-lo em um local público. Em vez disso, rapidamente abri minha mala de representante, conhecida como “coração de mãe” e meti o pacote bem no fundo. O dinheiro que ganhamos não era, nem de longe, uma fortuna, mas era um bom dinheiro. A minha parte, ou seja, a metade do prêmio, correspondia a mais do dobro dos meus ganhos médios, entre fixo e comissões, mensais, com minha atividade profissional.
Para comprovar que de fato estava em uma maré de sorte, na semana seguinte iria tirar quinze dias de férias em Ubatuba, com minha atual namorada e um grupo de casais de amigos, já havíamos nos cotizado e alugado uma bela e espaçosa casa na praia de Domingas Dias.
Ǫuem é autônomo, como eu, não tem direito a férias remuneradas, então, para gozar o merecido descanso, são necessários um bom planejamento e uma economia mensal de uma certa quantia, para fazer frente às despesas não ordinárias do período vacante, além dos compromissos mensais normais que não cessam. Assim, a parte que me coube no prêmio veio a calhar e não tive o menor resquício de dó em “investir” até o último centavo em meu lazer e bem-estar e, por que não, partilhar um pouco com os companheiros de viagem. Muita cerveja, caipirinha, maminha, picanha e costela para os churrascos, camarão e outros acepipes, mais cerveja, mais caipirinha…
Bem descansado e feliz com as férias maravilhosas que tive e, ainda, por mais um lance de sorte, Ubatuba, contrariando sua fama, nos proporcionou duas semanas de céu aberto, calor e uma brisa agradável, nem uma gota de chuva. Ǫuando cheguei de volta a casa, sem nenhum remorso por ter gastado todo o dinheiro que o bicho me deu, pois como dizia minha avó: “dinheiro que vem fácil, vai fácil”, antes mesmo de começar a desfazer as malas, parei um instante e pensei comigo:
-Mas que japonês burro, hein? Se tivesse jogado o milhar na cabeça, teríamos ganhado o dobro!
Nota do autor: A leitora e o leitor atentos certamente perceberam que durante todo o texto, em nenhum momento, revelei qual é o tal “milhar da sorte” que me acompanha até hoje, mas durante os quarenta e poucos anos passados desde aquele dia nos longínquos anos 80, nunca mais ganhei nada.
Todavia, não perdi a fé. Ainda, vez por outra, quando tenho oportunidade, faço meu joguinho. Além disso, sempre compro, nas casas lotéricas da vida, o bilhete do burro. Como é difícil encontrar o milhar, me contento com a centena e até mesmo a dezena, ou também com uma das outras dezenas do grupo.
Para jogar na Mega Sena, costumo desmembrar o milhar em dezenas, por enquanto, também, nada de ganhar. Vou continuar insistindo.
Voltando ao fato de não ter informado o milhar da sorte, foi proposital. E, não me levem a mal, também não vou dizer agora. Não quero influenciar ninguém. Embora, desde o título, todos ficaram sabendo que é do grupo do burro. Mas atenção, não recomendo o burro pois está atrasado, como se fala no jargão, aparece poucas vezes. Em vez disso, prefiram elefante, águia, cachorro ou cavalo, os bichos mais “viciados”, outra expressão da comunidade bicheira, ou seja, os que aparecem no topo da lista com maior frequência.
E boa sorte a todas e todos!